Esparsos

segunda-feira, fevereiro 28, 2005

Ciclo

Saí à rua e um relâmpago poderoso e coriscante atingiu-me directamente no peito. Caí ao chão e o fogo começou a crepitar em mim. Choveu e a chuva apagou o fogo, lavou-me e purificou-me. O tempo passou e eu era agora a Terra.

Sentir-me um ciclo completo com tudo o que vejo à minha volta é tão difícil como sentir-me completo em mim mesmo. Desejando sempre algo diferente, algo mais para além de nós, a nossa insatisfação leva-nos aos meandros da infelicidade de ser eu e ele e todos os outros juntos, mas sempre eternamente separados pela fina linha da identidade que consegue fugir à generalização de um crescimento tão semelhante.

sábado, fevereiro 26, 2005

Sono

Tenho sono. Perdido na canção suave da noite que me embala, tenho sono. Depois de um dia de sol abrasador sobre mim, tenho sono. Depois do desgaste inusitado da minha pele contra a tua, das minhas mãos encostadas às tuas, da minha cara junto à tua, tenho sono.

Depois de te ver morta, uma bala perdida na tua cabeça, tenho sono. Sono eterno.

quinta-feira, fevereiro 24, 2005

Corpos

A música que está a tocar ajuda à atmosfera, mas é um pequeno elemento; apenas mais uma coisa que se junta a todas as outras. Ao vinho que me deste a beber, suave e hipnotizante; ao cheiro do incenso que entra pelas minhas narinas com o efeito de uma droga que me rouba o autodomínio; à visão do teu próprio corpo por cima desse vestido justo e de um vermelho-escuro que me perturba não sei bem porquê.

Aproximas-te de mim muito lentamente, como se o mundo girasse em câmara lenta e tu não o quisesses perturbar e pões os teus braços à volta do meu pescoço: não, não vais dançar, claro, porque a música não o permite. Vens apenas ficar mais próxima de mim, vens apenas para que o teu perfume se entranhe também em mim e entre em mim, se misture com o incenso... As tuas mãos afagam-me as costas em círculos, consigo sentir as tuas unhas através da minha camisa. Depois, as palmas das mãos a descerem... a passarem pela minha cintura... a apalparem-me atrás... Mordes o lábio inferior com os incisivos enquanto me olhas nos olhos. O meu desejo apenas consegue aumentar. Como consigo resistir-te? Não consigo. Lanço também os meus braços à tua volta e procuro beijar-te. Viras a cara: provocas-me. Desequilibro-te para te tentar obrigar a cair sobre o sofá que está mesmo ao nosso lado, mas tu resistes ainda. Por fim, cedes - ou tomas o controlo - e a tua língua invade a minha boca com uma fúria que eu não esperava, e as nossas línguas retorcem-se e acariciam-se mutuamente, ora na boca de um, ora na boca de outro. Começo a tentar despir-te no meio da confusão de membros.

Por breves instantes, a minha consciência dá sinal de vida por entre toda a concupiscência. A excitação levada ao extremo, algo que já não sentia há muito tempo, tem ainda em si espaço para alguma racionalidade. Penso que talvez não devesse ir fornicar com uma mulher que conheci há tão pouco tempo... Estranhamente, a música que está a tocar dá-me a resposta:

"When done with me
forget if you think I feel ashamed.
A wild thing
never felt sorry for anything."

Olhos nos olhos, ambos toldados pela antecipação do prazer, devoramo-nos e ascendemos ao plano máximo da existência humana carnal. Mais do que uma vez.

[Nota: Música "Bare Grace Misery", Nightwish]

terça-feira, fevereiro 22, 2005

Quarto crescente

Por fim tinha conseguido aquilo que queria! Por fim, aquela coisa a que chamam felicidade! Ali, à minha frente! Diverti-me tanto! Jantámos, fomos ao cinema e para acabar a noite fomos passear para perto do rio, a ver a Lua reflectida nas águas apenas ocasionalmente perturbadas pelo rumorejar distante de um qualquer barco.

Os nossos dedos já se tinham aninhado uns nos outros e tudo estava calmo; mesmo o vento tinha amainado apenas para nós. Decidi parar e tu paraste também. Olhei-te nos olhos. Não sei se sabes, mas os olhos foram uma das primeiras coisas para as quais olhei quando te vi pela primeira vez. Não têm nenhuma cor exótica, eu sei. São de um castanho bastante claro, mas têm uma outra particularidade muito mais significativa - é através deles que consigo ver o que se passa contigo. Diz-se sempre que "os olhos são o espelho da alma", mas essa expressão ganha alguma palidez quando se compara com a forma como um simples olhar teu pode transmitir uma panóplia de sentimentos que parece nunca mais acabar. Naquele momento o teu olhar transmitia uma ternura sem paralelo, algo que - confesso-o - nunca antes me tinha sido dirigido plenamente. Certamente terás amado e sido amada por muitas pessoas... eu não tive a mesma sorte. Só agora consigo perceber o que é que essa palavra quer dizer, pelo menos agora estou a começar a descobrir. Até aqui, tinha satisfeito o corpo sempre que possível (e nem nisso tinha tido grande sorte), mas agora começo a perceber porque é que a paixão é tão avassaladoramente boa. Porque é que a paixão nos rouba a consciência de tudo o que não está directamente relacionado com a felicidade que sentimos.

Disse as palavras que sentia explodirem dentro de mim, impressionando até a mim mesmo, tanto pelo conteúdo, como pela rapidez de como tudo se tinha precipitado. Olhei-te nos olhos e disse "Amo-te". E tu sorriste para mim. Não consigo descrever o sentimento de puro êxtase e felicidade que sobreveio na minha alma nesse momento. Fechaste os olhos, mantendo esse teu lindo e sublime sorriso e beijaste os meus lábios docemente. Abraçámo-nos e continuamos a beijar-nos debaixo da Lua em fase crescente. O arco de Cupido disparara sobre nós... sobre mim, pelo menos! Se soubesses o tempo que eu esperei por isto!...

...Acordei de repente, sozinho na cama, soergui-me e vi que eram cinco da manhã. Amaldiçoei a chuva que me fizera acordar e que me tirara do sonho perfeito. Voltei a deitar-me na esperança de retomar o sonho, antes de ter que acordar de novo para ir para o trabalho.

domingo, fevereiro 20, 2005

Antiga casa

Passo a passo, aproximava-me daquele sítio onde tantas e tão horríveis memórias estavam guardadas. Passo a passo, tudo regressava à minha memória, poluíndo todos os meus sentidos com flashbacks do que se tinha passado. O suor frio começou a fazer-se sentir debaixo dos meus braços, acompanhado com uma sensação de subsequente desconforto. Parecia mesmo que a própria temperatura tinha baixado apenas para me dar suores frios.

Olhei em redor. A casa estava em ruínas, o alpendre estava quase a cair e a tinta, outrora de uma branca pureza, estava agora lascada, suja, carcomida... Em suma, a plena podridão. Foi ali que passei tantos momentos felizes! Foi ali que brinquei no jardim (que agora mais parecia um matagal de sujidade, lixo e ervas por cortar) com toda a minha família, que celebrei mil e uma festas por mil e uma razões diferentes, foi ali que aprendi a andar, a falar, a amar. Só que agora estava tudo em ruínas. E todas aquelas recordações eram demasiadamente dolorosas para eu conseguir ali ficar muito tempo. Entrei de novo no carro e arranquei dali para fora, fugindo de mim próprio, fugindo do medo de me lembrar exactamente daquela felicidade toda e do medo de que toda essa felicidade passada me fosse atirar para dentro de mais um poço de negra escuridão depressiva.

Comparar aqueles doces anos com o resto da minha vida era demais. E que metáfora era aquele velho edifício! Todas as velhas recordações destruídas, toda a felicidade abandonada no rio do tempo. No fim, apenas eu: escombros.

sexta-feira, fevereiro 18, 2005

Anjo de pedra

O portão era de ferro forte e maciço, mas o tempo tinha já carcomido a fechadura, mais frágil e enferrujada, que se abriu quase instantaneamente, como se movida pelo meu desejo. Entrei. Andei por ali, em silêncio, observando as esculturas mais elaboradas e ignorando as mais pequenas.

Tinha sido há quase três anos que tinhas desaparecido da minha vista. Assim, sem deixar qualquer rasto. Procurei-te, pus todos os meios disponíveis para te encontrar em funcionamento - tudo me parecia em vão, tudo me parecia hediondamente lento, quase como se o mundo estivesse a gozar comigo! Só muito tempo depois (mais tempo do que aquele que a minha esperança sobrevivera) é que eu soube que afinal ainda estavas viva. Presa, maltratada, abusada e sodomizada, mas viva. Raptada... Aquelas coisas que só acontecem a uns poucos infelizes, tendo eu tido a infelicidade de ser o "infeliz da porta do lado" (do meu vizinho). Vi imagens tuas, vi filmes onde te faziam entrar e fazer as coisas mais degradantes. Quis berrar porque quis estar louco, quis não acreditar naquilo que via, quis pensar que era tudo um pesadelo, mas não era. Fiquei a olhar o ecrã do computador durante muito tempo depois de ter visto as provas de que vivias ainda, apesar de longe demais... Estava a tentar perceber tudo aquilo. Só mesmo a tentar...

Era esse episódio que estar ali me fazia recordar. Mas desta vez eu não tinha vindo sozinho, tinha trazido companhia feminina. Sentámo-nos os dois na relva que crescia, lentamente, para fora da terra fértil. Olhámos um para o outro, olhos nos olhos, e começámos a beijar-nos na boca. Algo se libertou dentro de mim e eu consegui deixar-me entregar à luxúria que tanto tempo atrás tinha sido castrada por imagens horríveis. Ali mesmo, consumi a minha fome. Ali mesmo a possuí, fui possuído por ela. Olhando para nós com os seus olhos de pedra, um daqueles misericordiosos anjos - figura poderosa tão fartamente presente em cemitérios como aquele.

quinta-feira, fevereiro 17, 2005

Nota do Autor

Em menos de um mês, já foram ultrapassadas quinhentas visitas a este blog. A todos os que contribuiram para este número, que me deixa bem contente, um muitíssimo grande e caloroso obrigado.

E, mais uma vez, convido todos os que o desejarem a manifestar-se, desde que com respeito mútuo e com pertinência, tanto para o bem como para o mal. Avizinha-se uma época de mais trabalho, mas tentarei sempre cumprir a cadência a que me propus. Espero também poder contar com as vossas visitas regulares.

Um grande abraço,
Prometeu

quarta-feira, fevereiro 16, 2005

Tempos

Saí de casa para ir comprar alguma peça de roupa: o meu guarda-fatos estava a abarrotar de peças velhas, antigas, ou mesmo antiquíssimas. Tirar algo dali para vestir e sair à rua era como fazer uma viagem no tempo para o passado... ou uma bolha de tempo separada do meio onde me movia.

Ao entrar no centro comercial, garanto que fiquei assustado: já há muito que não ia a um sítio daqueles e não estava habituado às multidões e ao calor. O calor!... tive que tirar o casaco e ficar em camisa, em pleno Inverno! Estranho... Lá consegui encontrar a loja: ainda mais pessoas, todas amontoadas, a agarrar nesta ou naquela peça de roupa, a irem experimentá-la. E tudo aquilo às claras: eram visíveis as manchas de suor nas camisas dos respeitáveis senhores e das cuidadas senhoras - logo os mesmos fluídos se iriam espalhar a outra roupa que experimentassem e assim sucessivamente, numa mistura nojenta de sujidade deste e daquele! Andei por ali a ver se havia alguma coisa que me agradasse, passando entre os expositores e os encontrões dos apressados, sentindo no ar o cheiro do desejo material e da inveja social; venenos que se misturavam num aroma acre, bastante humano e ao mesmo tempo bastante bestial.

Começava a sentir o lanche às voltas no meu estômago. Agarrei qualquer coisa, paguei e saí apressadamente. Por mero instinto, olhei para cima para ver se o dia ia adiantado: apenas o betão e a tinta me corresponderam, deixando-me exactamente na mesma. Procurei um relógio algures: todos os que existiam estavam errados, sabia-o. Morbidamente estranho - pretendendo eu actualizar-me, tinha que ir a um sítio onde também existia a aparência de que o tempo era algo surreal. Ali era dia e noite ao mesmo tempo, sempre. Quem não tivesse consigo forma de medir o tempo, tãopouco o conseguiria fazer naquele lugar; tudo tinha sido preparado para enclausurar a mente do comprador numa bolha de imutabilidade e para o atrair para as montras falsamente brilhantes. Resolvi esquecer que queria saber as horas e saí dali para fora.

Regressei a casa perturbado, regressei a um ponto de referência onde podia recuperar a minha paz. E, ao mesmo tempo, a um ponto onde a paz vinha da sua imutabilidade, do facto de estar preso no tempo.

segunda-feira, fevereiro 14, 2005

Argumentos

Era ao volante de um carro que me conseguia sentir bem. Que conseguia libertar a minha tensão acumulada.

Conseguimos discutir mais uma vez. Não sei como, mas devemos, com certeza, bater algum record de discussões consecutivas. Hoje foi mais um daqueles episódios que mais valia conseguir esquecer; mas que permanece, que se acumula aos outros, que escorre em mim para vir encher a ampulheta da minha impaciência. Se tão-somente pudesses dar-me um pouco de paz...!
Sim, eu sei que ontem cheguei tarde a casa; sim, eu sei que ontem não atendi o telefone da empresa; sim, eu sei que vinha muito cansado mesmo, para quem esteve em frente a um computador a rever textos! Eu sei todas essas coisas: passaram-se comigo! Mas não: sentes que tens que perguntar tudo, que tens que questionar tudo, tens que saber cada passo que dei desde que saíste de pé de mim! Porquê?! Porque é que me obrigas a mentir-te e a inventar desculpas? Sim, eu sei que estive com outra mulher, mas simplesmente porque já não suporto esses teus interrogatórios, porque me sufocas em preocupações, porque aquilo que sinto... ...ainda não mudou completamente. Eu ainda te amo, mas sinto-me furioso contigo por me obrigares a fazer isto! Eu não queria, a sério! Tenta não me possuir, tenta não me prender! NÃO ME PRENDAS!

O carro voou contra o rail de protecção e embateu de frente contra o monte em que a estrada tinha sido escavada. A explosão que se vê nos filmes não aconteceu, mas o carro foi comprimido, e com ele também eu fui despedaçado, estraçalhado... Morri. Ridícula, a minha morte. ...Tal como as minhas desculpas a mim próprio.

sábado, fevereiro 12, 2005

Memória

A limpidez da água quase me assustou: não tinha a certeza de estar em frente a um rio ou a uma corrente de platina líquida e brilhante; talvez até mesmo em frente a um espelho nunca antes visto. Eu podia olhar para mim mesmo baixando os olhos. Podia ver-me em toda a minha simplicidade e em toda a minha postura ligeiramente corcovada pelos espancamentos sucessivos que o meu espírito tinha levado ao longo de toda a sua vida. Não resisti à tentação de me pôr de joelhos e de mergulhar a minha mão ali. Uma sensação esquisita perpassou-me todo o braço. Um arrepio espalhou-se pelo corpo.

Era uma sensação de liberdade que nunca antes conhecera. Era sentir que podia ter tudo o que queria ali mesmo. Comecei a despir-me; com cada peça de roupa que saía, mais feliz eu ficava! Mergulhei.

Era difícil nadar ali. A água não era bem... água... Era espessa, estranha... agarrava-se a mim... Só que já não importava - finalmente estava livre. E, apesar de me estar a afogar, que bem me sabiam as águas do Letes!

quinta-feira, fevereiro 10, 2005

Lua

A Lua brilhava no céu nocturno e eu uivava à Lua. É daquelas coisas que toda a gente devia fazer - ao invés, preferem ficar presos nas suas gaiolas de comportamento exemplar, feitas de respeito, orgulho e preconceito. A Lua estava cheia: eu simplesmente tinha que uivar! Nunca o fizeram?! Então não critiquem.

A sensação mais estranha atingiu-me então. Todo o cansaço de uma vida vivida a correr parecia evaporar-se com cada uivo agudo que fazia penetrar a escuridão, e ao mesmo tempo parecia que eu me estava a encolher sobre mim mesmo. Tudo estava tão diferente... Consegui atingir aquele estado de comunhão com o que me rodeava (lá alto, no espaço, presa à Terra, mas num movimento de mútua dependência), algo que nunca antes me acontecera. Eu espalhava-me agora por entre todas as estrelas do universo, percorria tudo e era tudo, a uma velocidade incomparavelmente superior à da luz, sem descanso e sem cansaço, estando consciente de todas as coisas em mim e de mim em todas as coisas.

Quando tudo acabou, eu era um lobo. Saí para tentar encontrar a floresta mais próxima ao abrigo da noite. A minha vida estava a começar finalmente.

terça-feira, fevereiro 08, 2005

Destruir uma pena

Matem-me porque eu canto a vida que vivem. Assassinem-me porque eu não vos embalo em doces histórias de felicidade eterna; cuspam-me em cima porque arranco pedaços de carne à essência metafísica humana. Violem-me porque eu violo a beleza intrínseca das palavras, ao usá-las para mostrar a decadência.

Depois, esqueçam-se de tudo o que leram, afoguem-se em belas histórias e tentem encompassá-las com a vossa vida. Enlouqueçam a fazê-lo - mais não conseguem.

domingo, fevereiro 06, 2005

Saturar

Sabes que mais? Fartei-me.

Todos os dias te sussurrava aos ouvidos algo belo, todos os dias dizia que te amava, todos os dias te mostrava como a minha alma era um caldeirão borbulhante de forças vitais querendo sair de mim, querendo encontrar, não o caminho para o teu corpo, mas sim o caminho para o teu coração, o caminho que te fizesse acreditar que eu realmente te amava. Mas fartei-me.

Depois, comecei a alardear o meu amor aos quatro ventos, como se fosse um megafone a quem tinham esquecido de desligar, ou como se o infernal Cerbero tivesse começado a uivar com a sua tríplice potência, ameaçando engolir o mundo no meu amor por ti. As próprias pedras começaram a chorar por mim, meu amor. A vibração que de mim emanava era superior a qualquer abalo, a qualquer Armagedão, a qualquer morticínio alguma vez perpretado por mão humana ou divina. Mas fartei-me.

Quando julgava que já não conseguia mais suportar aquilo, comecei a tentar odiar-te. Comecei a tentar ver em ti a caixa de Pandora, a fonte de todos os tormentos, o próprio Pecado Original personificado, a decadência e a Morte. Só que tentar conspurcar a tua essência ia-me enlouquecendo. Tentar violar a minha imagem de ti era como expôr-me à abrasão de um milhão de sóis sobre mim, enquanto a outra parte era sugada para um buraco negro, perdendo qualquer noção de realidade no horizonte de eventos...

Foi então que desisti. Só o silêncio te ocupa a existência agora, pelo menos da minha parte. Pode ser que assim te faça falta o rumorejar das minhas palavras em ti. Talvez agora te livres dessa excrescência que te tapava os ouvidos - faz o que quiseres, porque ao ter-me calado, desisti de ti. Perdoa-me mas... fartei-me.

sexta-feira, fevereiro 04, 2005

No mar

Estar dentro de água sempre me fez sentir bem. Talvez a ausência de gravidade, talvez a renovada destreza de quem se arrasta por terra e que vê ali uma forma de ganhar uma graciosidade que não possui no seu elemento natural. Ao mesmo tempo, perdida a acuidade da visão. Era quase perfeito não?

Ainda hoje te vi passar à frente da minha janela. Pensei que talvez pudesses ter reparado em mim, mas caminhavas ostensivamente em frente, mulher que luta contra as adversidades como uma rocha que luta contra o vento: parece sempre incólume, mas pouco a pouco cede à inexorável vontade de se erodir, de deixar que a sua essência se espalhe e se misture. Só então as conseguimos apreciar, parece. Olhamos as rochas que estão à beira-mar como incómodas, mas gostamos da areia que pisamos, esquecendo que para que pudéssemos desfrutar das areias cálidas ou escaldantes, húmidas ou ensopadas, tiveram primeiro as rochas de abandonar a sua identidade, tiveram de ser mortas, camada a camada, grão a grão, arrancando de si aquilo que as constitui. Admirei essa força em ti, mas, ao mesmo tempo, sabia-te condenada a cair. Se querias ter sucesso, os teus filhos eram prejudicados; se querias ter sucesso, o teu trabalho era quase uma prostituição do corpo e da alma, agarrada a quotas sexistas; se querias sucesso, tinhas que compreender que tinhas que deixar de ser mulher. Eras assim erodida. E quando deixasses de ser mulher por completo, quando deixasses de ser completamente tu, ou atingirias o sucesso, ou serias completamente desprezada por ti mesma.

Imaginei-te então louca, ao passares pela minha janela. Imaginei-te em procura de uma quimera que te faria perderes toda a sensação, todo o sentimento. E imaginei também que poderias estar ao meu lado. É claro que provavelmente não terias a mesma projecção que tens agora (afinal de contas, quem sou eu?!), mas pelo menos terias felicidade. E eu também... Quer dizer, não achas que o dinheiro dá real felicidade, pois não? Se calhar até achas... nesse caso não seria capaz de dar-te felicidade... Só que tenho também que pensar na minha felicidade, não é?! A tua é mais importante para mim porque te amo - o problema é que tu não me amas e a tua felicidade é mais importante também para ti e nesse caso, porque me deveria eu preocupar com a tua? É claro que parte da minha felicidade depende da tua felicidade, só que a tua felicidade anula a minha felicidade... ... ...

Mergulho outra vez e ouço o silêncio com ruído de fundo que se consegue captar de forma harmoniosa apenas no mar. Gostava de ter em mim a capacidade de emitir chamamentos que percorreriam quilómetros nas águas agitadas, vencendo a distância e fazendo-me crescer para além de mim mesmo. Só que o mar sabe que eu não sou de lá e expulsa-me, afugenta-me, afoga-me, aborta-me.

quarta-feira, fevereiro 02, 2005

Escola

Quanta crueldade... as criancinhas, tão adoradas e mimadas, os monstros de amanhã, os facínoras, ditadores e assassinos, os polítitos, ladrões e mentirosos, os trapaceiros, bem-sucedidos e falidos. Tudo nas criancinhas que brincam no recreio de uma escola. Pensando bem no caso, dali sairão os futuros violadores, que irão arrancar as cuecas a mulheres que agora são da idade deles, que vivem noutro sítio qualquer - ou até mesmo ali perto, quem sabe?!

Fiquei com uma vontade extrema de fazer explodir aquilo tudo. Afinal, se não houver futuro, não há sofrimento, certo? Mas faltavam-me as bombas, ou a dinamite...

Fui para casa e comecei a escavar dentro de mim. Tentei ir o mais fundo que conseguia na minha memória, sempre na esperança de encontrar aquele momento singular que me transformou na pessoa que sou hoje. Sim, não sabiam? A vida não é um fenómeno contínuo no espaço e no tempo! Nós vivemos certos dias decisivos, em que tudo está desequilibrado e em que alguma decisão é tomada; fora isso, apenas pomos a vida em pausa e ficamos a ver pastar... ou a pastar, consoante o caso.

Bom, o resultado da escavação foi interessante: aparentemente não me consigo lembrar de algo tão antigo. Perdi uma parte da minha vida, então... Volto a entrar dentro de mim: agora preciso de uma confirmação, preciso de alguma coisa que me restaure a certeza que eu sou eu, ou algo do género. As salas dentro de mim são muitas. Vagueio mais ou menos sem saber o que faço, vou furando através de espaços oníricos e caixotes com pesadelos encerrados há muito. Começo a sentir uma certa leveza na cabeça; sou atraído por um perfume que paira no ar, mas que é mais forte numa dada direcção. Subo as escadas para baixo e entro num corredor diagonal que quase roça a quarta dimensão. É ali dentro que encontro as longas sessões de espancamento que o meu pai me costumava dar, com uma fivela de metal, ou mesmo com uma régua de alumínio, esburacada (a imitar uma menina-dos-cinco-olhos).

Saí apressado e em pânico. Percebia agora porque é que os facínoras vinham dali: era ali que o poder se exercia sem controle, era ali que os novos reprimidos esperavam o momento da submissão em que fossem despidos de tudo o que lhes é pessoal e condenados a não ser mais do que o fedor que rodeia uma estrebaria.

terça-feira, fevereiro 01, 2005

Nota do Autor

Já se passou uma primeira semana em que vi a forma como os leitores reagiam ao blog, feito a título experimental. A princípio, não estava certo sobre se seria uma boa ideia fazê-lo; mas decidi-me e, segundo parece, as críticas têm sido suficientemente boas para que valha a pena continuar a publicar.

Agradeço desde já todos e quaisquer comentários e críticas (desde que construtivas, claro) feitas por todo e qualquer leitor; aproveito também para avisar que, a partir de agora, tendo passado esta primeira fase de teste, as publicações serão feitas de dois em dois dias, ao invés de diariamente, o que permite que cada post seja lido com mais atenção e tenha mais impacto durante um período maior de tempo.

Entretanto, perguntam-se vocês uns aos outros quem será a pessoa que assina "mestra". Tentem descobrir... pelo menos quem me conhece...