Esparsos

quarta-feira, março 30, 2005

Entrelaçados

Hoje estive muito tempo deitado a teu lado, com as minhas pernas entrelaçadas nas tuas. E via o teu olhar a vaguear pelo espaço, pensando em coisas que desconheço, pensando talvez em coisas que eu não quero saber... Não, porque eu quero saber tudo, mesmo aquilo que dói saber. Mesmo quando eu sangro, prefiro saber porque sangro. Mas estavas tu no teu mutismo e eu nada podia fazer. Beijava-te de vez em quando e sentia em ti a energia a correr do teu coração para todas as partes do teu corpo. E sentia-a a sair de ti e a entrar em mim pela tua boca, pelos toques mais ou menos delicados da tua língua na minha, ou dela a passar ao de leve nos meus lábios abertos e sedentos de ti.

Só queria mergulhar em ti e saber tudo sobre ti com cada suspiro que desses. Tornar-me um absoluto contigo, viver como vives, sofrer por ti o que sofres agora, entregar a minha alma às alimárias da terra para que respirasses um pouco mais desafogadamente. Porque a tristeza que dizes não estar no teu olhar, vejo-a. Porque nem a tua voz nem as tuas acções escondem o espelho da tua alma. Queria que uníssemos as cabeças, que a nossa pele e ossos dessem lugar à fusão simbiótica e momentânea dos nossos cérebros, que as ligações sinápticas abrissem espaço para mim na tua mente e que, sem chorares nem sofreres, me pudesses dizer tudo. Porque dizer algo, ou escrever algo, é viver algo. E eu sei que morres mil vezes por dia, sei que dentro de ti te debates e te degladias contra todo o mundo (contra mim, às vezes) para manteres aquele fugaz momento de sanidade abençoada que te permite respirar aquela névoa intoxicada que se levanta do mar e se vai alojar, putrefacta, nos teus pulmões cansados por vezes de sustentar o teu corpo frágil.

É então que estico a minha mão e comprimo os meus lábios contra a tua bochecha e te digo "Amo-te" como se nada mais fosse verdade, porque na verdade, só aquilo é verdadeiro para mim no eterno momento que estou contigo. É então que me enfureço contra o mundo que te aleija o coração (contra mim, às vezes) e queria construir à volta do teu coração paredes de puro e duro diamante, que arma alguma conseguisse penetrar e palavra alguma conseguisse violar. É então que a minha respiração se encompassa com a tua para tentar perceber exactamente que ser és. E como acabaste aqui, deitada ao pé de mim, com as tuas pernas entrelaçadas nas minhas. Eu, que me julgava fora do alcance da felicidade, eu, que um dia escrevi a dizer que a felicidade não existe, estou agora com as minhas pernas entrelaçadas nas tuas, desejando ardentemente saber tudo o que tu pensas: anular os meus pensamentos para saber os teus. E sim, percebo o teu silêncio. Percebo que não queiras estragar este momento em que estamos de pernas entrelaçadas com palavras que nos farão chorar; percebo também que me queres resguardar de tudo isso - e amo-te ainda mais por isso. Só que também percebo que eu sou tu, e que tu és eu, e que partilharmos as nossas pernas e o nosso calor é partilharmos tudo.

Depois tu olhas para os meus olhos, dizes palavras carinhosas, e eu desapareço no rio do meu amor. Olho para a Lua de Prata a brilhar e penso na felicidade para além do mundo, acima dele. E nas minhas pernas entrelaçadas nas tuas.

sábado, março 26, 2005

Excerto do conto "Pesadelo Segundo"

Saiu de casa para a noite adorada e para um frio que lhe provocava doces arrepios por todo o corpo. Fechou e revirou os olhos, desfrutando daquela sensação da qual nunca se cansava. Daquele prazer no meio de tanta confusão. A sua pele estava completamente arrepiada: ela olhou para os seus braços desnudos e afagou-os – era assim que se sentia bem, era com este frio que conseguia conviver e sentir-se mais viva. O dia oprimia-a com o seu calor, com o seu bulício e com as anónimas pessoas a viajar, cada uma enfiada num pequeno mundo de origem e destino, de tarefas a cumprir e de desorganizações interiores que o Sol fazia esquecer. Não gostava de como os raios do astro-rei influenciavam todas as coisas e as magoavam, parecendo que apenas as iluminava. Só com a escuridão de um céu pintalgado de estrelas e da presença da branca, pálida e resplandecente Lua é que conseguia sentir alguma ligação, alguma empatia com o mundo que a rodeava. Estava parada à beira do passeio, à espera de ver a sombra dele projectada no pavimento, os passos dele a aproximarem-se, o som do vento que se levantava a fazer esvoaçar o casaco comprido dele... As pequenas coisas, os pequenos pormenores que lhe davam um sentido de beleza a tudo. Uma beleza negra, secreta e oculta, cheia de luxúria e sofrimento combinados, onde todas as coisas perdiam o significado para se transformarem numa mesma acepção de Beleza universal que preenchia todos os sentidos e que lhe mostrava o outro lado da existência diurna dos transeuntes que, para grande desgraça dela, se roçavam no seu ser, na sua existência, manchando-lhe a pele com traços de uma luminosidade dourada execrável e conspurcada pelo suor humano, pelas penitências do calor e do horror. Aqui, nada disso existia. Apenas a benfazeja sensação de libertação, de poder abrir os braços e conseguir agarrar a noite por um momento fugaz e feliz de inspiração. Era a sensação de conseguir mostrar quem realmente era que dava a Cátia o seu desejo de permanecer numa noite eterna, em que tudo fosse sempre um pouco mais escuro para que cada um pudesse brilhar por si mesmo, ao invés de viver toldado pela luminescência do Sol. A Lua não sufocava ninguém, a Lua não tinha crueldade em si... Cátia olhou para cima, mas apenas conseguiu vislumbrar as estrelas distantes... carrascos demasiado afastados que viam o seu poder também anulado pelo Sol e que, de tão longe que estavam, tinham aqui papéis inversos.


Ele estava a chegar finalmente. Primeiro foi o barulho das botas que ela tanto gostava, depois foi o som da sua voz a cantar baixinho uma música de que ela gostava ainda mais. Por fim, foi a sua negra figura a contornar a esquina que a fez alegrar-se e entristecer-se ao mesmo tempo. Havia aquela sensação de felicidade e de bem-estar de quando eles estavam juntos, de quando se beijavam e tocavam; ao mesmo tempo havia a ansiedade de tudo aquilo que ela tinha para lhe contar e também o facto de apenas lhe poder transmitir receios ao invés de confirmações ou desmentidos. Tudo aquilo poderia significar o princípio de uma nova vida, mas isso significaria o fim das vidas deles; ou poderia significar o fim de uma vida, o que acarretaria preços que Cátia não conseguia compreender ainda. Agora tinha, porém, de se preocupar com não preocupar demasiado a única pessoa que a amava. Tinha também de se preocupar consigo mesma. Ele amava-a e ela sabia-o, mas não conseguia afastar de si o medo paralisante e infernal de que ele se afastasse para todo o sempre. Se assim fosse, não conseguiria sobreviver. Não seria capaz de resistir a uma vida inteira passada sem aquela pessoa que a tinha salvo do esquecimento e da decadência de uma morte quase certa por oblívio. Ele significava tudo aquilo por que ela tinha lutado, significava a estabilidade que nunca antes tinha tido na sua vida: sem essa estabilidade, como conseguiria prosseguir a sua vida asquerosa? Como seria ela capaz de suportar o contacto com uma população luminosa, carregada com o fardo do Sol, com o fardo do completo desvendamento? Não seria. Além disso, sem ele, não teria coragem para fazer aquilo que era obrigatório. Se ele lhe falhasse agora... Não, não podia pensar nisso! Mas a ideia estava lá, insidiosamente plantada pela eterna dúvida, por uma insegurança omnipresente que sempre tinha marcado a existência de Cátia... uma fome devoradora de ser amada e um medo explosivo de ser rejeitada depois de ter confiado em alguém. Como uma felina na noite, Cátia procurava olhar em todas as direcções da sua vida, procurando quem a quisesse caçar, quem procurasse prejudicá-la.


O primeiro contacto entre os olhos de ambos transmitiu a Cátia uma calma imensa. Ele tinha esse poder, ele tinha o poder de aproximá-la mais da sua própria humanidade para que ela se abrisse ao mundo, mesmo que ao nocturno. Os seus lábios tocaram-se longamente, a mão direita dele passou por detrás do pescoço dela e a mão esquerda dela acariciou-lhe o rosto enquanto ela o beijava sofregamente, com medo de que aquele fosse o derradeiro beijo, enquanto as suas línguas brincavam demorada e ferozmente nas bocas de ambos, trocando saliva, trocando afectos e subentendidas dedicações de amor e de prazer... de luxúria... A mesma luxúria que tinha levado a isto. Foi este pensamento que a fez abrandar um pouco mais, que a impediu de embarcar no curso de emoções que o desejo fazia espalhar no corpo dela.
Interromperam o beijo. Ela olhou-o profundamente nos olhos e lembrou-se do pesadelo que tinha tido. Nestes olhos, porém, o que ela viu foi diferente: viu desejo, viu amor, viu dedicação de corpo e alma. Os olhos estavam fixos, não se mexiam: ele sujeitava-se ao escrutínio dela de livre vontade, sem fazer a ela o mesmo. A proximidade era tal que conseguiam sentir a respiração um do outro a bater-lhes na face, que conseguiam ver cada pormenor daquelas peles brancas e enregeladas. A tensão era grande, mas Cátia sabia que este não era ainda o momento. Tinha que aproveitar estes momentos de felicidade amorosa como sendo os últimos, só depois arriscaria a dizer-lhe exactamente o que se tinha passado. Tudo o que importava era que eles ficassem juntos. Por esse desejo qualquer coisa valeria a pena. Ela não queria afastá-lo, ela não queria afastar-se. Doloroso ou não, ela tinha que fazer alguma coisa... faria aquilo que a mantivesse perto dele.


- Amo-te. – disse ela, serenamente, enquanto o fixava. Algo que parecia tão banal foi dito com a maior das intensidades. Ela queria transmitir força e também veracidade nas suas palavras. Queria que ele soubesse que aquela era a maior e a mais importante verdade para ela naquele momento. Ele sorriu antes de responder-lhe.


- Eu também te amo. Muito mesmo. Nada neste mundo vai mudar isso. – terminou beijando-a na boca novamente, com doçura e suavidade. Eles abraçaram-se com força, durante alguns instantes. Cátia procurava ter dentro de si a segurança necessária para ter a coragem de lhe contar as notícias; ele procurava mais uma vez assegurar-se de que tudo aquilo era mais do que um mero sonho, procurava reconfortar Cátia, pois tinha já percebido que algo não estava bem com ela. A proximidade daquele momento recordava a ambos uma mesma situação não muito distante no tempo, se bem que por razões diferentes.


Ela quebrou o contacto e colocou-se ao lado dele, dando-lhe a mão. Começaram a caminhar lentamente. De cada vez que passavam por debaixo de um candeeiro involuntariamente franziam o sobrolho para proteger os olhos daquele globo de luz que perturbava a de outro modo intocada escuridão que os protegia de tudo, mesmo deles próprios. Caminhavam lado a lado, os passos perfeitamente sincronizados, os corpos em harmonia, os braços estendidos ao lado do corpo, rígidos, sem qualquer movimento a não ser o de um dedo que ocasionalmente afagava a mão que segurava.


Ele esperava. Enquanto isso, ela tentava pensar em mil e uma maneiras para começar um tal discurso. Nenhuma lhe pareceu suficientemente apaziguadora, nenhuma lhe pareceu decente: eram todas cruéis, eram todas o espelho de uma verdade que tinha de ser dita apenas por obrigação, por necessidade. Sim, ela estava dividida e sabia-o bem. A clareza de mente permitia-lhe saber racionalmente aquilo que era necessário fazer, mas dentro de si existia algo que recusava esta ideia, que queria sacrificar tudo àquele acontecimento. Somente as questões práticas a fariam agir contra aquilo que, dentro de si, desejava; somente isso a faria ir contra as suas próprias convicções. Era também por isso que, de certa forma, tinha medo. Se ele estivesse disposto a sacrificar tudo, ela não resistiria e a sua parte racional sucumbiria. Alguns anos depois iria arrepender-se (e mais uma vez a memória do pesadelo que teve mostrou-lhe o horror de uma possibilidade bem exequível), mas ela estava a viver no agora, num agora onde só existia ela, ele e a Lua. Sentiu-se momentaneamente enojada por ter de pôr um fim àquela noite que estava a correr tão bem... Porém, tinha de ser feito e, entrementes, tinha pensado numa forma de iniciar a conversa que o deixaria minimamente... atordoado, talvez...


- Amor... – começou, olhando em frente, fitando o vazio que tanto adorava, vendo o vapor da sua respiração a dissipar-se no ar. – Aquela noite... foi espectacular, sabias? Adorei ter estado contigo, adorei ter sentido o teu corpo junto do meu, o toque das tuas mãos em mim... os momentos que partilhámos. Foi uma experiência que nunca esquecerei, amor. – apertou a mão dele com força. Se ela estivesse a olhar para ele, poderia ter visto o sorriso dele a alargar-se, o brilho nos olhos de orgulho e contentamento, de pura felicidade. Era a primeira vez que ela tinha dito algo tão positivo sobre aquela noite de escaldante contacto entre dois corpos quase desconhecidos. As palavras lutavam dentro dele para saírem, para lhe garantirem a mesma coisa, mil vezes mais, se necessário fosse! Gaguejou por um momento, mas logo se recompôs.


- Oh, amor, eu também adorei ter estado contigo! Foi a melhor noite da minha vida, a sério! Quero repetir aquele momento as vezes todas que quiseres... Passo imenso tempo a pensar nisso, a pensar em ti, a desejar estar contigo, ao teu lado, perto de onde possa tocar-te, beijar-te... – a emoção estava num crescendo, ele a olhar para ela, nem se importando com o facto de o olhar dela se manter fixo em frente... mas ela cortou-lhe a palavra súbita e bruscamente.


- Eu tenho uma coisa para te contar, amor. Eu sei que isto vai ser difícil de ouvir, mas tem que ser... – as frases foram despejadas rapidamente, antes que ela perdesse a coragem. O sorriso dele desapareceu naquele mesmo instante. O coração de ambos estava mais acelerado, a respiração tinha-se tornado superficial e havia algo dentro deles que parecia faltar, como se uma parte das suas entranhas tivesse perdido a sua consistência e se tivesse liquefeito. Ela não lhe deixou tempo para perguntar o que se passava, querendo arrumar a questão de uma só vez. – Eu estou grávida, amor.


Silêncio. Os passos pararam porque eles pararam. O barulho de vozes era coisa do passado. Os ruídos nocturnos tinham-se eclipsado. Ele caiu num estupor por alguns momentos, tentando absorver a informação que lhe chegava, incrédulo. Piscou os olhos várias vezes, como se isso fosse ajudar a aclarar a situação; a boca abria-se e fechava-se como se fosse um peixe fora de água e não conseguisse respirar. Entretanto, Cátia tinha fechado os olhos e baixado ligeiramente a cabeça para esconder a lágrima solitária que lhe escorria agora pela face esquerda... que continuou até ter chegado aos seus lábios, até ela a ter lambido e provado o seu salgado sabor, tão diferente do sangue que por vezes também saboreava. A mais completa imobilidade entre eles. Uma calma sepulcral... não! Uma calma lunar – uma imutabilidade de algo que está ali, que parece ficar sempre igual, com matemática precisão. ...Algum movimento... As mãos dele tremiam, afinal. Ela estava a tentar controlar os soluços e por isso tremia também. Alguma barreira se tinha quebrado e o frio parecia estar a entrar nos seus corpos, o mesmo tão bem-amado frio que agora os fazia tremer involuntariamente. Ele parecia derrotado, como se tivesse sido fisicamente atacado por alguém muito mais poderoso. Algo no seu cérebro se parecia agitar, negando o horror. A língua finalmente ganhara a mobilidade necessária para transmitir discurso inteligível.


- Mas... mas... nós usámos... eu... Tens a certeza? Já... – palavras soltas, ideias que o assaltavam, que ela compreendia tão bem.
Não podia negar que estava à espera de uma atitude ligeiramente mais carinhosa, mas também é verdade que percebera o seu choque. Afinal de contas, era verdade, eles tinham tomado precauções. Triste rebelde destino que parece reservar sempre sofrimento a mais do que a justa conta a quem mostra não mais querer sofrer... Porém, a verdade é que ela tinha a certeza. A certeza absoluta e científica. Não havia como escapar a essa verdade inegável.


- Tenho a certeza sim, amor. – a voz queria sair firme, mas era impossível esconder as modulações de um sofrimento que se tentava calar.
A reacção que ela esperara aconteceu então. Abandonando toda a compostura, abandonando a consciência de onde estavam, ele lançou-se nos braços dela, agarrou-a fortemente, a chorar, a murmurar ao ouvido dela pequenas frases que supostamente a iriam reconfortar. Também ela sucumbiu à tempestade interior. Nunca fora capaz de controlar decentemente as suas emoções, e se o tinha tentado fazer até aqui era só para não perturbá-lo ainda mais. Isso era agora desnecessário. Dois vultos negros numa negra e estreita rua, banhados pela luz eléctrica e dolorosamente artificial de um candeeiro público e pelo natural brilho difuso de uma Lua desesperadamente longe de qualquer um deles, de qualquer apreensão ou capacidade de conforto psicológico. Agora estavam ali apenas ela e ele. E um candeeiro. Um candeeiro que não trazia nenhum tipo de iluminação para aquela situação – mais uma vez, a artificialidade da vida falhada.


- Mas então temos que... fazer qualquer coisa! Não podes... – a frase dele ficou suspensa a meio.


- Eu sei. – as lágrimas recomeçaram mais intensamente a escorrer pela cara de Cátia. Ainda agora tinha pensado naquele momento e já ele estava a acontecer. O fim de uma vida que nem sequer tinha tido hipótese de começar, um amor que estaria para sempre ensombrado pela lembrança desse mesmo facto, que nunca mais seria igual. Algo ali tinha mudado. Talvez tivesse sido pelo facto de ele ter sido demasiado pragmático, talvez tivesse sido pelo olhar dele... Algo tinha, sem dúvida alguma, sido alterado.


Ela afastou-se dele. Um pequeno passo para trás. Depois outro. Virou-se e começou a correr em direcção a casa. Nesse mesmo momento o vento libertou uma rajada de fúria. Ele ficou especado. Ela correu. Uma noite sem saída.

[Excerto de "Noites Sem Saída" da minha autoria]

sexta-feira, março 25, 2005

Nota do Autor

Quero dar as boas vindas ao blog Espelho Negro, que me parece (porque conheço a autora) fadado a grandes obras e grandes posts.

Prometeu

quinta-feira, março 24, 2005

Inversão

Com uma faca cortei a minha mão e o sangue escorreu para cima. Percebi a inversão do meu mundo que me tinha confundido: com tudo do avesso, não poderia esperar fazer sentido de andar com os pés na Terra. Fiquei entre o cair para cima e afogar-me debaixo das cabeças de quem passava por cima de mim e olhava para baixo.

terça-feira, março 22, 2005

Putrefacção

Eu estava deitado e alguém me estava a levar. Conseguia ouvir vozes à minha volta e sentia que estava num lugar escuro, sem luz. Ao mesmo tempo, sentia-me sonolento, talvez pela falta de oxigénio.

Conseguia também ouvir pessoas a chorar. Tudo aquilo me pareceu muito esquisito: talvez eu estivesse a sonhar... Mas o sítio onde eu estava abanava um pouco e era incómodo. Certamente não estava a sonhar. Acabaram por me pousar passado pouco tempo, e eu continuava sem conseguir perceber o que lá fora se dizia. Era estranho como aparentemente toda a gente murmurava uns para os outros; ocasionalmente um arranco do que parecia ser alguém a chorar. Mesmo por entre a confusão da minha sonolência eu estava a achar tudo aquilo incrivelmente estranho. Depois consegui perceber que estavam a movimentar-me de novo, nesta vez na vertical. Pousaram-me com um baque surdo e começaram a atirar para cima de onde eu estava alguma coisa...

Terra?... Caixão! Eu estava a ser enterrado! VIVO! E já estava fraco demais para me conseguir mexer, as minhas leves pancadas nem sequer eram audíveis por cima do som da terra a bater secamente no caixão. Imediatamente comecei a imaginar o meu corpo a apodrecer, a começar a desfazer-se aos bocados, a tresandar; a minha carne a ser penetrada por insectos que se vinham banquetear de mim, aos quais eu serviria de refeição e maternidade da sua amaldiçoada progénie!

Quando acordei daquele sonho para iniciar a rotina do dia-a-dia, só desejei que não tivesse sido verdadeiramente um sonho.

sexta-feira, março 18, 2005

Prisão

Escuro e apertado. É assim o sítio onde eu estou. Respirar é difícil, os movimentos são penosos. Queria fugir, mas não consigo. Estou completamente amarrado. Estou preso dentro de um sítio que não compreendo perfeitamente, que me assenta como se tivesse sido feito à medida inversa da minha vontade de me libertar. Olho em redor e vou vendo as coisas de um limitadíssimo prisma, o único que é possível ver de onde estou. Olho numa direcção, depois noutra: entretanto perdi a primeira. Perco-me dentro deste sítio, ele tem espaços e segredos que não desvendo de forma alguma, por muito que tenha tentado. E dói. É doloroso estar aqui. É enervante estar aqui. Tudo é tão desproporcional. Tenho tamanho a mais para estar aqui. Como foi que ainda nada se partiu? Eu movo-me tão pesadamente porque esta não é a escala de quem eu sou. A graciosidade não é para mim porque simplesmente ela está fora do meu alcance físico. Outros, vejo-os a andar sem tropeçar em nada, sem sequer vacilarem nos seus passos: leves e quase etéreos - mas eu não. Estou amarrado ao quadrado do infinito. De cada vez que embato contra alguma coisa, consigo realmente sentir a dilaceração. É algo de perfeitamente real, que há quem não tenha sentido. Se calhar esses não estão presos, apesar de estarem ao meu lado. Ou então não têm o meu tamanho... Não sei, não consigo avaliar as escalas destas dimensões tão bem como faço com outras coisas. Mas sei que a leveza deles contrasta horrivelmente com o meu tamanho, com o meu peso, com as minhas vontades que se traduzem em acções desastradas. Por muito que me tente mexer, por muito que faça algum esforço para conseguir soltar-me e para ganhar a liberdade por que anseio há tanto tempo, simplesmente continuo no mesmo sítio, irrevogavelmente preso. Sim, eu sei que não há escapatória. Eu sei que não há saída porque nem sequer há entrada. Eu sei que esta condenação é para sempre.

Só que eu sinto-me tão grande...! Sinto que nos meus cabelos poderiam dançar supernovas, que nas minhas mãos morreriam estrelas velhas e que me banharia com os jactos de matéria e energia que saem dos buracos negros. Sinto que poderia tocar num planeta com a ponta do dedo e logo ele se tornaria verdejante, ou então pó galáctico. Que com um mero pensamento mudaria os cursos dos rios e faria o vento voltear à minha volta para eu me poder sentir como se voasse. Sinto-me até como se conseguisse voar! Um olhar para o infinito, um mero acto de vontade e escapar-me-ia para o ar, depois para o vácuo, e percorreria num instante momentaneamente infinito todo o Universo, e para além do próprio Universo, ajudando a desdobrar e a revelar o espaço e o tempo. E eu estaria assim solto e estaria na posse da minha graciosidade, a que está à minha escala, a que tem o poder de me fazer feliz para além de qualquer descrição que se possa associar a esta palavra!!! Seria finalmente livre de me desdobrar, de me revelar, de explodir, de implodir, de mover-me nas 4 dimensões e inventar uma quinta.

Só que estou preso. Dentro do meu corpo. Eu sou tão grande e o meu corpo é tão pequeno porquê?

quarta-feira, março 16, 2005

Reflexo

De cada vez que me olho ao espelho, tenho uma enorme tendência de o partir. De cada vez que vejo aquela reflexão no espelho, começo a odiar o próprio conceito de espelho.

Dia a dia, hora a hora, as nossas mentes torturadas com estigmas, as nossas vidas penetradas por ideias feitas e enlatadas numa qualquer fábrica muito muito longe, fora do alcance da nossa imaginação; escondidas por detrás da férrea vontade de quem nos verga as espinhas com pesos. Basta sair à rua. Basta não sair de casa. Basta estar acordado, e também basta dormir. Em todos os momentos as mãos invisíveis e intrusivas entram dentro dos nossos crânios, remexem por entre a nossa massa encefálica e se deleitam a rasgar as ligações do bom-senso, da realidade e da objectividade. Depois retiram-se e quando acordamos temos a sensação que a cabeça está pesada, que não dormimos como deve ser... Sem sabermos que durante a noite a privacidade das nossas mentes foi invadida. Porque tudo aquilo que nos invade durante a noite é tão-somente o resultado da ebulição, mistura e fermentação de tudo o que comemos durante o dia, de toda a actividade em que nos empenhámos ou em que alguém se empenhou em nos impingir.

Mas não. Não odeio a minha aparência. Odeio a humanidade. Aquela que se curva. Aquela que gosta de descer ao esgoto, que se manda para debaixo dos camiões que passam pelas estradas secundárias e pelas ruas sem saída.

segunda-feira, março 14, 2005

Leve toque

Tocaste nas minhas feridas e elas sararam. Tocaste nos meus olhos e eles passaram a ver. Tudo isto sem qualquer sobrenatural apelo; apenas com a força do teu ser. Tudo aquilo que consegues tocar sofre imediata transmutação.

Pena que o meu coração esteja fora do teu alcance.

sábado, março 12, 2005

Neblina

Via-te distante e silenciosamente caminhando sobre todos os terrenos que defronte ti se entrepunham e te tentavam sublime ou agresivamente tolher-te da tua estrada, por ti escolhida e voluntariamente marcada como destino dos teus pés sedentos de caminhar eternamente num sôfrego absorver de vida e luz interior.

Cada vez que os teus cabelos adejavam perto de mim - a apenas alguns metros - eu suspirava. Não, não era paixão; muito menos era um arrebatador amor à primeira vista (o contra-senso que a própria expressão é!!). Sentia-te longe e queria saber quem eras, queria saber se tudo o que se dizia de ti era tão mentira como eu supunha. Queria ver para além dos fumos da ilusão que - supunha eu - espalhavas ao teu redor. Eu conseguia sentir-lhe o cheiro, conseguia ver a ligeira perturbação no ar. Andavas sempre envolta numa neblina estranha, que fazia com que os olhares dos demais escorregassem de ti para fora, que os impedia de fixar com atenção o olhar em ti, que os distraía e os punha a pensar em tudo menos em ti. Sabes, eu também gostava de ter esse teu poder mágico, mas não... em mim todos os olhares escarninhos se fixam e me deixam imóvel no centro da ribalta, ansioso e de movimentos presos, hesitante e sem saber exactamente como viver a minha vida.

O mais interessante é que essa tua barreira não funcionava comigo. Muito pelo contrário, eu ficava inexoravelmente apanhado no difuso brilho que ela emitia em teu redor. Queria ultrapassar o teu nevoeiro, chegar-me perto de ti e dizer-te algo que te fizesse reparar em mim. Mas ainda não tinha reunido coragem para isso. Ficava apenas a olhar-te de longe, a desejar ter-te como minha amiga. Entretanto, todos os outros pensavam que eu me apaixonara: uma daquelas loucuras passageiras que não deixam grande marca e logo perdem o interesse. Mal sabiam eles que a profundidade do que eu sentia ultrapassava completamente a mera paixão, que atravessava todas as camadas do Amor para chegar à mais profunda de todas. Eu sentia (unilateralmente, claro) que éramos como almas gémeas, como irmãos gémeos separados à nascença e que a nossa afinidade suplantava quaisquer processos naturais ou de relações atribuladas.

Só que eu apenas te via passar, dentro dessa neblina... Não sabia mais nada. Sozinho, no meio da multidão, com todos os olhares que resvalavam de ti para virem cair em cima de mim. Frustração eterna, tanto quanto o teu caminhar me afasta de ti e te afasta de mim.

quinta-feira, março 10, 2005

Primevo

Disseram-me que se eu gritasse, me ouviriam. Disseram-me que se eu conseguisse chamar a atenção das outras pessoas, teria por fim aquilo que queria. Então, depois de ouvir constantemente a mesma coisa, fiquei convencido de que até podia ser verdade, até podia haver ali o princípio de uma ideia interessante e que valesse a pena explorar.

Saí para a rua, sob o sol invernal das 4 horas da tarde e deambulei pela cidade atarefada com os seus pequenos afazeres. As pessoas acotovelavam-se à minha volta, as pessoas passavam por mim e nem me viam. Ainda assim, um leve sorriso perpassou-me a cara: em breve iria fazer aquilo que me disseram para fazer (porque era remédio santo) e tudo isso mudaria! As artérias da cidade são como as nossas artérias: quanto mais trabalham, mais enchem. Mas de forma díspar das nossas, elas não se alargam para deixar passar um pouco mais do fluxo humano, ficam rigidamente no mesmo sítio, onde as fizeram. Culpa dos pouco previdentes arquitectos e projectistas dos espaços que ficarão futuramente ainda mais impossíveis, mais intransitáveis...(O que seria se as ruas se pudessem alargar sem prejuízo dos prédios e afins construções?)

Escolhi uma praça larga, cheia de gente àquela hora, que tinha uma estátua bem no centro. Mostrava uma gloriosa cena de guerra, com um qualquer herói que não conhecia a espisotear os inimigos... Quanta beleza contém a carnificina, aparentemente, para que a escolhamos como adorno de cidades, espelhos de uma suposta identidade. Perto ouvi um guia turístico a contar a história daquela batalha com fogoso entusiasmo, com um orgulho nacional exacerbado, quase rebentando uma veia com toda a comoção. Rapazito novo, que certamente fazia aquilo pela primeira vez; queria imprimir um cunho de autenticidade e fazer mergulhar a sua audiência no espírito do que tinha sido uma brava conquista. De facto, as caras iluminavam-se, e os olhos vidrados pareciam estar a assistir a uma qualquer cena mesmo ali, como se por passe de mágica tivessem sido transportados daquele continuum espaço-tempo. Não sei onde é que eles estavam, porque no passado não podia ser de certeza - como é que alguém apresentaria uma tal expressão ao ver membros decepados, cabeças a rolar pelo chão, corpos espezinhados por cavalos em fúria, trespassados por setas perdidas, chacinados por espadas afiadas e lanças pontiagudas? (Depois vão para casa e horrorizam-se com as atrocidades do presente... como?! Como?!) Eu juro que fechei os olhos e tentei imaginar-me dentro da cena como realmente se passou - admito também que, apesar de fraca tentativa, o meu estômago começou a protestar muito depressa e eu não quis insistir. O que me lembrou que eu estava ali com um propósito.

Reuni o máximo de ar que consegui nos pulmões e gritei com o máximo de volume que consegui. Não pronunciei palavra alguma, gritei simplesmente. As pessoas começaram a olhar para mim! (Estava então a funcionar! Oh, a alegria!) Repeti a operação, e as pessoas começaram a afastar-se sensivelmente de mim. O guia, contrariado por terem distraído a audiência, afastou os turistas dali... (?!)(Naquelas guerras o que havia mais era gente a gritar, e eu era só um! Para onde tinha ido o espírito de imersão na experiência da gloriosa vitória?) Comecei a ficar perturbado: não era aquilo que queria. Resolvi articular palavras: "Aproximem-se! Quero-vos, irmãos, semelhantes!" A minha garganta já doía, mas as palavras lá saíram e ecoaram pelas paredes que, distantes, me rodeavam. Cada vez mais as pessoas criavam uma cratera de nada à minha volta.

O silêncio.

Resolvi calar o primevo grito de mim. Afinal tinham-me enganado. As pessoas afastavam-se conforme eu abandonei aquele sítio. Como sempre o tinham feito, de uma forma ou de outra. Apenas mais uma prova da inefável solidão. Mas que fazer com o grito primevo em mim? Calei-o por agora... E amanhã? Voltarei a tentar?

terça-feira, março 08, 2005

Arrependimento

Tu és todas aquelas vozes.

Eu sou o barulho de uma ferida a fechar.

E de outra a abrir.

Fernando Ribeiro



Enquanto sentia o calor da água do banho em que estava deitado, sentia também um abandono quase etéreo do meu corpo. O desfalecimento dos sentidos, o abandonar do vigor da vida... o torpor que se sente sempre nestas ocasiões em que a mente relaxa e o corpo a acompanha... Olho para cima, olho para o tecto branco que está agora carregado de humidade (ou, pelo menos, assim o adivinho... a minha miopia não me deixa ver realmente aquilo para onde olho – nisto, como noutras coisas, a nossa biologia muito se aproxima da nossa metafísica, e aquilo que vemos por nós mesmos não é senão uma pálida e confusa massa daquilo que existe realmente).

Depois, como um acto de uma vontade externa a mim que se impõe, começo a pensar no tempo que vivi, nas coisas que vi enquanto deambulava por um mundo alienígena. Penso nas pessoas que vi, que conheci, que amei e odiei, que senti sempre tão longe, tão afastadas de mim por uma qualquer invisível parede...
(A minha mente começa a perder a capacidade de se concentrar numa só coisa, e agora é a música que me entra pelos ouvidos que se destaca, uma música específica que se repete: ouço London After Midnight, ouço o vocalista a dizer:

“Is this life, this degradation?
Pointless game, humiliation…
Born to die, we’re born to lose
And not one choice we make we choose”…)

Só consigo pensar que ele tem razão. Um jogo sem sentido, no qual cada um de nós é individualmente vencido, derrotado por todas as forças que se conjugam no momento do nascimento e no momento da morte se afastam.
Passaram apenas alguns segundos desde que tudo começou, mas parecem horas que se arrastam pelos corredores dos hospitais em penosas queixas e murmúrios de insatisfação... Olho para a água que rodeia o meu corpo nu: o seu tom rosáceo torna-se divertido aos meus olhos! Só de pensar que, como numa espécie de retorno, também este ambiente tem essa cor reconfortante, rodeada pelo branco dos azulejos... Um pouco como a maternidade que me viu nascer. Um pouco como um segundo nascimento, mas, desta feita, um nascimento consciente de outra ordem, de uma diferente importância para quem sou.
Começo a sentir a tal sonolência. Benfazeja, já te esperava há muito! Fiz tudo para que te pudesses instalar, e mesmo assim tanto tempo que tu demoraste! As pálpebras cerram-se. Largo o x-ato que tinha na mão esquerda... A dor do pulso direito torna-se, ao mesmo tempo, maior e menor; oscila segundo a minha consciência vacilante.
Subitamente, uma ideia! Todas as escolhas que fiz, fui eu a fazê-las, fui eu que escolhi escolher, fui eu que nasci livre e que assumi a minha liberdade, há muito tempo atrás, sentado na cadeira de uma aula de Filosofia! Então existia ali algo que poderia ser explorado, algo que tinha de ser vivido!

Ou não... Ao longe, o sino da igreja assinala as três horas da manhã... Mais perto de mim, o ribombar frenético de pancadas violentas na porta trancada, que apenas escuto parcialmente. Os meus lábios articulam a palavra “desculpa”.

domingo, março 06, 2005

Na caverna

Só a areia da praia é que me parecia terreno suficientemente confortável para eu andar; tudo o resto era demasiado rígido, demasiado compacto e concreto para mim. Assim, sempre tinha a volubilidade das areias, que nunca estão exactamente no mesmo sítio, nem nunca ficam exactamente no mesmo sítio.

Através das minhas pernas, o mar penetrava a caverna fazendo um ruído... cavernoso. Ergui a minha voz sobre o barulho do mar, e lancei um grito: "Porquê?" O eco morreu depressa por causa da interferência do ruído do mar lá dentro e a resposta não apareceu. Aquela tinha sido a minha última louca aposta para descobrir. Aparentemente vou ficar sem saber o que te levou a fazer isso.

Será que era isso que querias?

quarta-feira, março 02, 2005

Alucinação

Continuava a sentir-me como se alguém me estivesse a pressionar a cara contra o chão, apesar de há muito tempo ter recuperado. Quase que conseguia lembrar o sabor do asfalto, se esticasse a língua para fora da minha boca. Fechei os olhos para tentar esconjurar a imagem do meu inconsciente, mas ela insistia em permanecer ali, em querer que eu nunca me esquecesse do que tinha acontecido. Sentia a fatalidade a abater-se sobre mim, sentia o perigo a rodear a minha percepção das coisas, a alterar a forma como olhava em redor. Buscava o inimigo, a ameaça que viria certamente a concretizar-se no momento em que me atrevesse a piscar os olhos.

Pequenos barulhos conseguiam fazer o meu coração quase saltar para fora do peito, e sentia na minha pele mil formigueiros de sensibilidade aparentemente aumentada; os sentidos aguçados em face do perigo. O roçagar de tecido à minha volta parecia rebentar aos meus ouvidos como o prenúncio de uma tempestade furiosa e perfeitamente selvagem. Estava calor, mas o suor frio que se espalhava pelas minhas costas impedia-me de sentir esse mesmo calor: não saberia sequer que estava calor senão pelas manchas de suor que via em quem me rodeava, bem como pelo aspecto ameaçador que o Sol tinha, lá em cima.

O momento aproximava-se, eu sentia-o, eu sabia-o. O barulho que se ouvia à minha volta assemelhava-se a uma vibração grave e aguda e grave e aguda... Era agora! Este era o momento! O vermelho apagou-se e o verde acendeu-se - nervosamente pus o pé na estrada para a atravessar, levado pelo mar de pequenas formigas tão grandes e anónimas como eu.