quarta-feira, fevereiro 16, 2005

Tempos

Saí de casa para ir comprar alguma peça de roupa: o meu guarda-fatos estava a abarrotar de peças velhas, antigas, ou mesmo antiquíssimas. Tirar algo dali para vestir e sair à rua era como fazer uma viagem no tempo para o passado... ou uma bolha de tempo separada do meio onde me movia.

Ao entrar no centro comercial, garanto que fiquei assustado: já há muito que não ia a um sítio daqueles e não estava habituado às multidões e ao calor. O calor!... tive que tirar o casaco e ficar em camisa, em pleno Inverno! Estranho... Lá consegui encontrar a loja: ainda mais pessoas, todas amontoadas, a agarrar nesta ou naquela peça de roupa, a irem experimentá-la. E tudo aquilo às claras: eram visíveis as manchas de suor nas camisas dos respeitáveis senhores e das cuidadas senhoras - logo os mesmos fluídos se iriam espalhar a outra roupa que experimentassem e assim sucessivamente, numa mistura nojenta de sujidade deste e daquele! Andei por ali a ver se havia alguma coisa que me agradasse, passando entre os expositores e os encontrões dos apressados, sentindo no ar o cheiro do desejo material e da inveja social; venenos que se misturavam num aroma acre, bastante humano e ao mesmo tempo bastante bestial.

Começava a sentir o lanche às voltas no meu estômago. Agarrei qualquer coisa, paguei e saí apressadamente. Por mero instinto, olhei para cima para ver se o dia ia adiantado: apenas o betão e a tinta me corresponderam, deixando-me exactamente na mesma. Procurei um relógio algures: todos os que existiam estavam errados, sabia-o. Morbidamente estranho - pretendendo eu actualizar-me, tinha que ir a um sítio onde também existia a aparência de que o tempo era algo surreal. Ali era dia e noite ao mesmo tempo, sempre. Quem não tivesse consigo forma de medir o tempo, tãopouco o conseguiria fazer naquele lugar; tudo tinha sido preparado para enclausurar a mente do comprador numa bolha de imutabilidade e para o atrair para as montras falsamente brilhantes. Resolvi esquecer que queria saber as horas e saí dali para fora.

Regressei a casa perturbado, regressei a um ponto de referência onde podia recuperar a minha paz. E, ao mesmo tempo, a um ponto onde a paz vinha da sua imutabilidade, do facto de estar preso no tempo.