sexta-feira, fevereiro 04, 2005

No mar

Estar dentro de água sempre me fez sentir bem. Talvez a ausência de gravidade, talvez a renovada destreza de quem se arrasta por terra e que vê ali uma forma de ganhar uma graciosidade que não possui no seu elemento natural. Ao mesmo tempo, perdida a acuidade da visão. Era quase perfeito não?

Ainda hoje te vi passar à frente da minha janela. Pensei que talvez pudesses ter reparado em mim, mas caminhavas ostensivamente em frente, mulher que luta contra as adversidades como uma rocha que luta contra o vento: parece sempre incólume, mas pouco a pouco cede à inexorável vontade de se erodir, de deixar que a sua essência se espalhe e se misture. Só então as conseguimos apreciar, parece. Olhamos as rochas que estão à beira-mar como incómodas, mas gostamos da areia que pisamos, esquecendo que para que pudéssemos desfrutar das areias cálidas ou escaldantes, húmidas ou ensopadas, tiveram primeiro as rochas de abandonar a sua identidade, tiveram de ser mortas, camada a camada, grão a grão, arrancando de si aquilo que as constitui. Admirei essa força em ti, mas, ao mesmo tempo, sabia-te condenada a cair. Se querias ter sucesso, os teus filhos eram prejudicados; se querias ter sucesso, o teu trabalho era quase uma prostituição do corpo e da alma, agarrada a quotas sexistas; se querias sucesso, tinhas que compreender que tinhas que deixar de ser mulher. Eras assim erodida. E quando deixasses de ser mulher por completo, quando deixasses de ser completamente tu, ou atingirias o sucesso, ou serias completamente desprezada por ti mesma.

Imaginei-te então louca, ao passares pela minha janela. Imaginei-te em procura de uma quimera que te faria perderes toda a sensação, todo o sentimento. E imaginei também que poderias estar ao meu lado. É claro que provavelmente não terias a mesma projecção que tens agora (afinal de contas, quem sou eu?!), mas pelo menos terias felicidade. E eu também... Quer dizer, não achas que o dinheiro dá real felicidade, pois não? Se calhar até achas... nesse caso não seria capaz de dar-te felicidade... Só que tenho também que pensar na minha felicidade, não é?! A tua é mais importante para mim porque te amo - o problema é que tu não me amas e a tua felicidade é mais importante também para ti e nesse caso, porque me deveria eu preocupar com a tua? É claro que parte da minha felicidade depende da tua felicidade, só que a tua felicidade anula a minha felicidade... ... ...

Mergulho outra vez e ouço o silêncio com ruído de fundo que se consegue captar de forma harmoniosa apenas no mar. Gostava de ter em mim a capacidade de emitir chamamentos que percorreriam quilómetros nas águas agitadas, vencendo a distância e fazendo-me crescer para além de mim mesmo. Só que o mar sabe que eu não sou de lá e expulsa-me, afugenta-me, afoga-me, aborta-me.