quinta-feira, março 10, 2005

Primevo

Disseram-me que se eu gritasse, me ouviriam. Disseram-me que se eu conseguisse chamar a atenção das outras pessoas, teria por fim aquilo que queria. Então, depois de ouvir constantemente a mesma coisa, fiquei convencido de que até podia ser verdade, até podia haver ali o princípio de uma ideia interessante e que valesse a pena explorar.

Saí para a rua, sob o sol invernal das 4 horas da tarde e deambulei pela cidade atarefada com os seus pequenos afazeres. As pessoas acotovelavam-se à minha volta, as pessoas passavam por mim e nem me viam. Ainda assim, um leve sorriso perpassou-me a cara: em breve iria fazer aquilo que me disseram para fazer (porque era remédio santo) e tudo isso mudaria! As artérias da cidade são como as nossas artérias: quanto mais trabalham, mais enchem. Mas de forma díspar das nossas, elas não se alargam para deixar passar um pouco mais do fluxo humano, ficam rigidamente no mesmo sítio, onde as fizeram. Culpa dos pouco previdentes arquitectos e projectistas dos espaços que ficarão futuramente ainda mais impossíveis, mais intransitáveis...(O que seria se as ruas se pudessem alargar sem prejuízo dos prédios e afins construções?)

Escolhi uma praça larga, cheia de gente àquela hora, que tinha uma estátua bem no centro. Mostrava uma gloriosa cena de guerra, com um qualquer herói que não conhecia a espisotear os inimigos... Quanta beleza contém a carnificina, aparentemente, para que a escolhamos como adorno de cidades, espelhos de uma suposta identidade. Perto ouvi um guia turístico a contar a história daquela batalha com fogoso entusiasmo, com um orgulho nacional exacerbado, quase rebentando uma veia com toda a comoção. Rapazito novo, que certamente fazia aquilo pela primeira vez; queria imprimir um cunho de autenticidade e fazer mergulhar a sua audiência no espírito do que tinha sido uma brava conquista. De facto, as caras iluminavam-se, e os olhos vidrados pareciam estar a assistir a uma qualquer cena mesmo ali, como se por passe de mágica tivessem sido transportados daquele continuum espaço-tempo. Não sei onde é que eles estavam, porque no passado não podia ser de certeza - como é que alguém apresentaria uma tal expressão ao ver membros decepados, cabeças a rolar pelo chão, corpos espezinhados por cavalos em fúria, trespassados por setas perdidas, chacinados por espadas afiadas e lanças pontiagudas? (Depois vão para casa e horrorizam-se com as atrocidades do presente... como?! Como?!) Eu juro que fechei os olhos e tentei imaginar-me dentro da cena como realmente se passou - admito também que, apesar de fraca tentativa, o meu estômago começou a protestar muito depressa e eu não quis insistir. O que me lembrou que eu estava ali com um propósito.

Reuni o máximo de ar que consegui nos pulmões e gritei com o máximo de volume que consegui. Não pronunciei palavra alguma, gritei simplesmente. As pessoas começaram a olhar para mim! (Estava então a funcionar! Oh, a alegria!) Repeti a operação, e as pessoas começaram a afastar-se sensivelmente de mim. O guia, contrariado por terem distraído a audiência, afastou os turistas dali... (?!)(Naquelas guerras o que havia mais era gente a gritar, e eu era só um! Para onde tinha ido o espírito de imersão na experiência da gloriosa vitória?) Comecei a ficar perturbado: não era aquilo que queria. Resolvi articular palavras: "Aproximem-se! Quero-vos, irmãos, semelhantes!" A minha garganta já doía, mas as palavras lá saíram e ecoaram pelas paredes que, distantes, me rodeavam. Cada vez mais as pessoas criavam uma cratera de nada à minha volta.

O silêncio.

Resolvi calar o primevo grito de mim. Afinal tinham-me enganado. As pessoas afastavam-se conforme eu abandonei aquele sítio. Como sempre o tinham feito, de uma forma ou de outra. Apenas mais uma prova da inefável solidão. Mas que fazer com o grito primevo em mim? Calei-o por agora... E amanhã? Voltarei a tentar?