Arrependimento
Tu és todas aquelas vozes.
Eu sou o barulho de uma ferida a fechar.
E de outra a abrir.
Fernando Ribeiro
Enquanto sentia o calor da água do banho em que estava deitado, sentia também um abandono quase etéreo do meu corpo. O desfalecimento dos sentidos, o abandonar do vigor da vida... o torpor que se sente sempre nestas ocasiões em que a mente relaxa e o corpo a acompanha... Olho para cima, olho para o tecto branco que está agora carregado de humidade (ou, pelo menos, assim o adivinho... a minha miopia não me deixa ver realmente aquilo para onde olho – nisto, como noutras coisas, a nossa biologia muito se aproxima da nossa metafísica, e aquilo que vemos por nós mesmos não é senão uma pálida e confusa massa daquilo que existe realmente).
Depois, como um acto de uma vontade externa a mim que se impõe, começo a pensar no tempo que vivi, nas coisas que vi enquanto deambulava por um mundo alienígena. Penso nas pessoas que vi, que conheci, que amei e odiei, que senti sempre tão longe, tão afastadas de mim por uma qualquer invisível parede...
(A minha mente começa a perder a capacidade de se concentrar numa só coisa, e agora é a música que me entra pelos ouvidos que se destaca, uma música específica que se repete: ouço London After Midnight, ouço o vocalista a dizer:
“Is this life, this degradation?
Pointless game, humiliation…
Born to die, we’re born to lose
And not one choice we make we choose”…)
Só consigo pensar que ele tem razão. Um jogo sem sentido, no qual cada um de nós é individualmente vencido, derrotado por todas as forças que se conjugam no momento do nascimento e no momento da morte se afastam.
Passaram apenas alguns segundos desde que tudo começou, mas parecem horas que se arrastam pelos corredores dos hospitais em penosas queixas e murmúrios de insatisfação... Olho para a água que rodeia o meu corpo nu: o seu tom rosáceo torna-se divertido aos meus olhos! Só de pensar que, como numa espécie de retorno, também este ambiente tem essa cor reconfortante, rodeada pelo branco dos azulejos... Um pouco como a maternidade que me viu nascer. Um pouco como um segundo nascimento, mas, desta feita, um nascimento consciente de outra ordem, de uma diferente importância para quem sou.
Começo a sentir a tal sonolência. Benfazeja, já te esperava há muito! Fiz tudo para que te pudesses instalar, e mesmo assim tanto tempo que tu demoraste! As pálpebras cerram-se. Largo o x-ato que tinha na mão esquerda... A dor do pulso direito torna-se, ao mesmo tempo, maior e menor; oscila segundo a minha consciência vacilante.
Subitamente, uma ideia! Todas as escolhas que fiz, fui eu a fazê-las, fui eu que escolhi escolher, fui eu que nasci livre e que assumi a minha liberdade, há muito tempo atrás, sentado na cadeira de uma aula de Filosofia! Então existia ali algo que poderia ser explorado, algo que tinha de ser vivido!
Ou não... Ao longe, o sino da igreja assinala as três horas da manhã... Mais perto de mim, o ribombar frenético de pancadas violentas na porta trancada, que apenas escuto parcialmente. Os meus lábios articulam a palavra “desculpa”.
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