quarta-feira, março 02, 2005

Alucinação

Continuava a sentir-me como se alguém me estivesse a pressionar a cara contra o chão, apesar de há muito tempo ter recuperado. Quase que conseguia lembrar o sabor do asfalto, se esticasse a língua para fora da minha boca. Fechei os olhos para tentar esconjurar a imagem do meu inconsciente, mas ela insistia em permanecer ali, em querer que eu nunca me esquecesse do que tinha acontecido. Sentia a fatalidade a abater-se sobre mim, sentia o perigo a rodear a minha percepção das coisas, a alterar a forma como olhava em redor. Buscava o inimigo, a ameaça que viria certamente a concretizar-se no momento em que me atrevesse a piscar os olhos.

Pequenos barulhos conseguiam fazer o meu coração quase saltar para fora do peito, e sentia na minha pele mil formigueiros de sensibilidade aparentemente aumentada; os sentidos aguçados em face do perigo. O roçagar de tecido à minha volta parecia rebentar aos meus ouvidos como o prenúncio de uma tempestade furiosa e perfeitamente selvagem. Estava calor, mas o suor frio que se espalhava pelas minhas costas impedia-me de sentir esse mesmo calor: não saberia sequer que estava calor senão pelas manchas de suor que via em quem me rodeava, bem como pelo aspecto ameaçador que o Sol tinha, lá em cima.

O momento aproximava-se, eu sentia-o, eu sabia-o. O barulho que se ouvia à minha volta assemelhava-se a uma vibração grave e aguda e grave e aguda... Era agora! Este era o momento! O vermelho apagou-se e o verde acendeu-se - nervosamente pus o pé na estrada para a atravessar, levado pelo mar de pequenas formigas tão grandes e anónimas como eu.