sábado, março 26, 2005

Excerto do conto "Pesadelo Segundo"

Saiu de casa para a noite adorada e para um frio que lhe provocava doces arrepios por todo o corpo. Fechou e revirou os olhos, desfrutando daquela sensação da qual nunca se cansava. Daquele prazer no meio de tanta confusão. A sua pele estava completamente arrepiada: ela olhou para os seus braços desnudos e afagou-os – era assim que se sentia bem, era com este frio que conseguia conviver e sentir-se mais viva. O dia oprimia-a com o seu calor, com o seu bulício e com as anónimas pessoas a viajar, cada uma enfiada num pequeno mundo de origem e destino, de tarefas a cumprir e de desorganizações interiores que o Sol fazia esquecer. Não gostava de como os raios do astro-rei influenciavam todas as coisas e as magoavam, parecendo que apenas as iluminava. Só com a escuridão de um céu pintalgado de estrelas e da presença da branca, pálida e resplandecente Lua é que conseguia sentir alguma ligação, alguma empatia com o mundo que a rodeava. Estava parada à beira do passeio, à espera de ver a sombra dele projectada no pavimento, os passos dele a aproximarem-se, o som do vento que se levantava a fazer esvoaçar o casaco comprido dele... As pequenas coisas, os pequenos pormenores que lhe davam um sentido de beleza a tudo. Uma beleza negra, secreta e oculta, cheia de luxúria e sofrimento combinados, onde todas as coisas perdiam o significado para se transformarem numa mesma acepção de Beleza universal que preenchia todos os sentidos e que lhe mostrava o outro lado da existência diurna dos transeuntes que, para grande desgraça dela, se roçavam no seu ser, na sua existência, manchando-lhe a pele com traços de uma luminosidade dourada execrável e conspurcada pelo suor humano, pelas penitências do calor e do horror. Aqui, nada disso existia. Apenas a benfazeja sensação de libertação, de poder abrir os braços e conseguir agarrar a noite por um momento fugaz e feliz de inspiração. Era a sensação de conseguir mostrar quem realmente era que dava a Cátia o seu desejo de permanecer numa noite eterna, em que tudo fosse sempre um pouco mais escuro para que cada um pudesse brilhar por si mesmo, ao invés de viver toldado pela luminescência do Sol. A Lua não sufocava ninguém, a Lua não tinha crueldade em si... Cátia olhou para cima, mas apenas conseguiu vislumbrar as estrelas distantes... carrascos demasiado afastados que viam o seu poder também anulado pelo Sol e que, de tão longe que estavam, tinham aqui papéis inversos.


Ele estava a chegar finalmente. Primeiro foi o barulho das botas que ela tanto gostava, depois foi o som da sua voz a cantar baixinho uma música de que ela gostava ainda mais. Por fim, foi a sua negra figura a contornar a esquina que a fez alegrar-se e entristecer-se ao mesmo tempo. Havia aquela sensação de felicidade e de bem-estar de quando eles estavam juntos, de quando se beijavam e tocavam; ao mesmo tempo havia a ansiedade de tudo aquilo que ela tinha para lhe contar e também o facto de apenas lhe poder transmitir receios ao invés de confirmações ou desmentidos. Tudo aquilo poderia significar o princípio de uma nova vida, mas isso significaria o fim das vidas deles; ou poderia significar o fim de uma vida, o que acarretaria preços que Cátia não conseguia compreender ainda. Agora tinha, porém, de se preocupar com não preocupar demasiado a única pessoa que a amava. Tinha também de se preocupar consigo mesma. Ele amava-a e ela sabia-o, mas não conseguia afastar de si o medo paralisante e infernal de que ele se afastasse para todo o sempre. Se assim fosse, não conseguiria sobreviver. Não seria capaz de resistir a uma vida inteira passada sem aquela pessoa que a tinha salvo do esquecimento e da decadência de uma morte quase certa por oblívio. Ele significava tudo aquilo por que ela tinha lutado, significava a estabilidade que nunca antes tinha tido na sua vida: sem essa estabilidade, como conseguiria prosseguir a sua vida asquerosa? Como seria ela capaz de suportar o contacto com uma população luminosa, carregada com o fardo do Sol, com o fardo do completo desvendamento? Não seria. Além disso, sem ele, não teria coragem para fazer aquilo que era obrigatório. Se ele lhe falhasse agora... Não, não podia pensar nisso! Mas a ideia estava lá, insidiosamente plantada pela eterna dúvida, por uma insegurança omnipresente que sempre tinha marcado a existência de Cátia... uma fome devoradora de ser amada e um medo explosivo de ser rejeitada depois de ter confiado em alguém. Como uma felina na noite, Cátia procurava olhar em todas as direcções da sua vida, procurando quem a quisesse caçar, quem procurasse prejudicá-la.


O primeiro contacto entre os olhos de ambos transmitiu a Cátia uma calma imensa. Ele tinha esse poder, ele tinha o poder de aproximá-la mais da sua própria humanidade para que ela se abrisse ao mundo, mesmo que ao nocturno. Os seus lábios tocaram-se longamente, a mão direita dele passou por detrás do pescoço dela e a mão esquerda dela acariciou-lhe o rosto enquanto ela o beijava sofregamente, com medo de que aquele fosse o derradeiro beijo, enquanto as suas línguas brincavam demorada e ferozmente nas bocas de ambos, trocando saliva, trocando afectos e subentendidas dedicações de amor e de prazer... de luxúria... A mesma luxúria que tinha levado a isto. Foi este pensamento que a fez abrandar um pouco mais, que a impediu de embarcar no curso de emoções que o desejo fazia espalhar no corpo dela.
Interromperam o beijo. Ela olhou-o profundamente nos olhos e lembrou-se do pesadelo que tinha tido. Nestes olhos, porém, o que ela viu foi diferente: viu desejo, viu amor, viu dedicação de corpo e alma. Os olhos estavam fixos, não se mexiam: ele sujeitava-se ao escrutínio dela de livre vontade, sem fazer a ela o mesmo. A proximidade era tal que conseguiam sentir a respiração um do outro a bater-lhes na face, que conseguiam ver cada pormenor daquelas peles brancas e enregeladas. A tensão era grande, mas Cátia sabia que este não era ainda o momento. Tinha que aproveitar estes momentos de felicidade amorosa como sendo os últimos, só depois arriscaria a dizer-lhe exactamente o que se tinha passado. Tudo o que importava era que eles ficassem juntos. Por esse desejo qualquer coisa valeria a pena. Ela não queria afastá-lo, ela não queria afastar-se. Doloroso ou não, ela tinha que fazer alguma coisa... faria aquilo que a mantivesse perto dele.


- Amo-te. – disse ela, serenamente, enquanto o fixava. Algo que parecia tão banal foi dito com a maior das intensidades. Ela queria transmitir força e também veracidade nas suas palavras. Queria que ele soubesse que aquela era a maior e a mais importante verdade para ela naquele momento. Ele sorriu antes de responder-lhe.


- Eu também te amo. Muito mesmo. Nada neste mundo vai mudar isso. – terminou beijando-a na boca novamente, com doçura e suavidade. Eles abraçaram-se com força, durante alguns instantes. Cátia procurava ter dentro de si a segurança necessária para ter a coragem de lhe contar as notícias; ele procurava mais uma vez assegurar-se de que tudo aquilo era mais do que um mero sonho, procurava reconfortar Cátia, pois tinha já percebido que algo não estava bem com ela. A proximidade daquele momento recordava a ambos uma mesma situação não muito distante no tempo, se bem que por razões diferentes.


Ela quebrou o contacto e colocou-se ao lado dele, dando-lhe a mão. Começaram a caminhar lentamente. De cada vez que passavam por debaixo de um candeeiro involuntariamente franziam o sobrolho para proteger os olhos daquele globo de luz que perturbava a de outro modo intocada escuridão que os protegia de tudo, mesmo deles próprios. Caminhavam lado a lado, os passos perfeitamente sincronizados, os corpos em harmonia, os braços estendidos ao lado do corpo, rígidos, sem qualquer movimento a não ser o de um dedo que ocasionalmente afagava a mão que segurava.


Ele esperava. Enquanto isso, ela tentava pensar em mil e uma maneiras para começar um tal discurso. Nenhuma lhe pareceu suficientemente apaziguadora, nenhuma lhe pareceu decente: eram todas cruéis, eram todas o espelho de uma verdade que tinha de ser dita apenas por obrigação, por necessidade. Sim, ela estava dividida e sabia-o bem. A clareza de mente permitia-lhe saber racionalmente aquilo que era necessário fazer, mas dentro de si existia algo que recusava esta ideia, que queria sacrificar tudo àquele acontecimento. Somente as questões práticas a fariam agir contra aquilo que, dentro de si, desejava; somente isso a faria ir contra as suas próprias convicções. Era também por isso que, de certa forma, tinha medo. Se ele estivesse disposto a sacrificar tudo, ela não resistiria e a sua parte racional sucumbiria. Alguns anos depois iria arrepender-se (e mais uma vez a memória do pesadelo que teve mostrou-lhe o horror de uma possibilidade bem exequível), mas ela estava a viver no agora, num agora onde só existia ela, ele e a Lua. Sentiu-se momentaneamente enojada por ter de pôr um fim àquela noite que estava a correr tão bem... Porém, tinha de ser feito e, entrementes, tinha pensado numa forma de iniciar a conversa que o deixaria minimamente... atordoado, talvez...


- Amor... – começou, olhando em frente, fitando o vazio que tanto adorava, vendo o vapor da sua respiração a dissipar-se no ar. – Aquela noite... foi espectacular, sabias? Adorei ter estado contigo, adorei ter sentido o teu corpo junto do meu, o toque das tuas mãos em mim... os momentos que partilhámos. Foi uma experiência que nunca esquecerei, amor. – apertou a mão dele com força. Se ela estivesse a olhar para ele, poderia ter visto o sorriso dele a alargar-se, o brilho nos olhos de orgulho e contentamento, de pura felicidade. Era a primeira vez que ela tinha dito algo tão positivo sobre aquela noite de escaldante contacto entre dois corpos quase desconhecidos. As palavras lutavam dentro dele para saírem, para lhe garantirem a mesma coisa, mil vezes mais, se necessário fosse! Gaguejou por um momento, mas logo se recompôs.


- Oh, amor, eu também adorei ter estado contigo! Foi a melhor noite da minha vida, a sério! Quero repetir aquele momento as vezes todas que quiseres... Passo imenso tempo a pensar nisso, a pensar em ti, a desejar estar contigo, ao teu lado, perto de onde possa tocar-te, beijar-te... – a emoção estava num crescendo, ele a olhar para ela, nem se importando com o facto de o olhar dela se manter fixo em frente... mas ela cortou-lhe a palavra súbita e bruscamente.


- Eu tenho uma coisa para te contar, amor. Eu sei que isto vai ser difícil de ouvir, mas tem que ser... – as frases foram despejadas rapidamente, antes que ela perdesse a coragem. O sorriso dele desapareceu naquele mesmo instante. O coração de ambos estava mais acelerado, a respiração tinha-se tornado superficial e havia algo dentro deles que parecia faltar, como se uma parte das suas entranhas tivesse perdido a sua consistência e se tivesse liquefeito. Ela não lhe deixou tempo para perguntar o que se passava, querendo arrumar a questão de uma só vez. – Eu estou grávida, amor.


Silêncio. Os passos pararam porque eles pararam. O barulho de vozes era coisa do passado. Os ruídos nocturnos tinham-se eclipsado. Ele caiu num estupor por alguns momentos, tentando absorver a informação que lhe chegava, incrédulo. Piscou os olhos várias vezes, como se isso fosse ajudar a aclarar a situação; a boca abria-se e fechava-se como se fosse um peixe fora de água e não conseguisse respirar. Entretanto, Cátia tinha fechado os olhos e baixado ligeiramente a cabeça para esconder a lágrima solitária que lhe escorria agora pela face esquerda... que continuou até ter chegado aos seus lábios, até ela a ter lambido e provado o seu salgado sabor, tão diferente do sangue que por vezes também saboreava. A mais completa imobilidade entre eles. Uma calma sepulcral... não! Uma calma lunar – uma imutabilidade de algo que está ali, que parece ficar sempre igual, com matemática precisão. ...Algum movimento... As mãos dele tremiam, afinal. Ela estava a tentar controlar os soluços e por isso tremia também. Alguma barreira se tinha quebrado e o frio parecia estar a entrar nos seus corpos, o mesmo tão bem-amado frio que agora os fazia tremer involuntariamente. Ele parecia derrotado, como se tivesse sido fisicamente atacado por alguém muito mais poderoso. Algo no seu cérebro se parecia agitar, negando o horror. A língua finalmente ganhara a mobilidade necessária para transmitir discurso inteligível.


- Mas... mas... nós usámos... eu... Tens a certeza? Já... – palavras soltas, ideias que o assaltavam, que ela compreendia tão bem.
Não podia negar que estava à espera de uma atitude ligeiramente mais carinhosa, mas também é verdade que percebera o seu choque. Afinal de contas, era verdade, eles tinham tomado precauções. Triste rebelde destino que parece reservar sempre sofrimento a mais do que a justa conta a quem mostra não mais querer sofrer... Porém, a verdade é que ela tinha a certeza. A certeza absoluta e científica. Não havia como escapar a essa verdade inegável.


- Tenho a certeza sim, amor. – a voz queria sair firme, mas era impossível esconder as modulações de um sofrimento que se tentava calar.
A reacção que ela esperara aconteceu então. Abandonando toda a compostura, abandonando a consciência de onde estavam, ele lançou-se nos braços dela, agarrou-a fortemente, a chorar, a murmurar ao ouvido dela pequenas frases que supostamente a iriam reconfortar. Também ela sucumbiu à tempestade interior. Nunca fora capaz de controlar decentemente as suas emoções, e se o tinha tentado fazer até aqui era só para não perturbá-lo ainda mais. Isso era agora desnecessário. Dois vultos negros numa negra e estreita rua, banhados pela luz eléctrica e dolorosamente artificial de um candeeiro público e pelo natural brilho difuso de uma Lua desesperadamente longe de qualquer um deles, de qualquer apreensão ou capacidade de conforto psicológico. Agora estavam ali apenas ela e ele. E um candeeiro. Um candeeiro que não trazia nenhum tipo de iluminação para aquela situação – mais uma vez, a artificialidade da vida falhada.


- Mas então temos que... fazer qualquer coisa! Não podes... – a frase dele ficou suspensa a meio.


- Eu sei. – as lágrimas recomeçaram mais intensamente a escorrer pela cara de Cátia. Ainda agora tinha pensado naquele momento e já ele estava a acontecer. O fim de uma vida que nem sequer tinha tido hipótese de começar, um amor que estaria para sempre ensombrado pela lembrança desse mesmo facto, que nunca mais seria igual. Algo ali tinha mudado. Talvez tivesse sido pelo facto de ele ter sido demasiado pragmático, talvez tivesse sido pelo olhar dele... Algo tinha, sem dúvida alguma, sido alterado.


Ela afastou-se dele. Um pequeno passo para trás. Depois outro. Virou-se e começou a correr em direcção a casa. Nesse mesmo momento o vento libertou uma rajada de fúria. Ele ficou especado. Ela correu. Uma noite sem saída.

[Excerto de "Noites Sem Saída" da minha autoria]