Esparsos

segunda-feira, janeiro 31, 2005

Dez anos depois

A rua era íngreme, mas eu não me importava. Ia ter contigo. Estava a chover, eu não tinha chapéu, nem os prédios tinham varandas que me pudessem proteger da chuva. Não fazia mal, eu ia ter contigo, ia ter com o meu amor finalmente. Eram estas as palavras que me estavam a correr na cabeça. A verdade é que, depois de ter pensado nelas, espequei. Ali, no meio da chuva. Ri-me com gosto:«é isto que o amor nos faz... tira-nos a inspiração e só sabemos dizer leviandades estúpidas, palavrinhas minúsculas e quase sem nexo, repetidas até se gastarem!»

A vida com ódio é uma vida forte. É uma vida que pode ser de medo, pode ser de raiva, pode ser de solidão e de vingança; também pode ser destas coisas todas. Só que a vida com ódio é uma vida eloquente. As palavras existem às miríades para expressarmos o nosso ódio. É por isso que nunca nos conseguimos elevar como humanos: a nossa língua é a lingua do ódio, é a Língua Negra de Mordor e nem sequer nos apercebemos. Só mesmo quando nos queremos apaixonar é que vemos que o amor é tacanho, fraco e pouco eloquente, que perde toda a suavidade da seda, passando sempre aos mesmos clichés, tal é a forma como o condicionamento feito sobre nós é forte. Esmaga-nos. Estar enamorado é estar esmagado debaixo de um penedo que nos vai torturando pouco a pouco, mas com a vantagem de não o sentirmos - inundados de endorfinas, cercados por feromonas e pelo cheiro quente a sexo. O ódio, frio e mais calculista, deixa-nos pensar, mas o amor obstrui-nos todos os poros, deixa-nos o corpo inundado de nada a não ser amor.

Vi-te no fundo da rua. Olhei para ti e aproximei-me a correr. Beijaste-me na boca. Conseguia sentir o sabor do que tinhas acabado de comer: um bolo qualquer, cheio de creme, de certeza. Bolas, sabes bem que eu não gosto desse sabor na minha boca! Eu nem sequer como bolos e agora tenho que te vir beijar com esse sabor?! Afastei-me com alguma brusquidão, mas alguma saliva dela tinha ficado na minha boca (dentro de mim, portanto!) e o sabor também não saía, por muita saliva que tentasse engolir! Abri a minha boca para a chuva torrencial, para tentar lavar-me. Para tentar apagar a minha lembrança física de ti: afogavas-me a alma em amor, quando a minha alma estava a arder no inferno!

Essa lembrança nojenta e asquerosa de quem eu era antigamente foi a última coisa que me veio à mente antes de me suicidar, 10 anos, dois meses e sete dias depois desse acontecimento. O que poderia ter sido da minha vida se não te tivesse deixado? A pergunta cruel, não é?... Agora não interessa, estou longe de tudo. Mas ainda me tortura a dúvida, mesmo quando o sangue corre difuso para fora de mim.

domingo, janeiro 30, 2005

Ícaro renovado

Bastava erguer os braços e lá ia eu pelos ares, rompendo todas as camadas de átomos que se misturam na atmosfera, sentindo o peso que a gravidade me impõe a todas as alturas a abandonar-me lentamente, como se me fosse levantado (não, recuso-me a dizer "de cima dos ombros" ou "de cima de mim") o jugo que me tinham imposto quando me condenaram a não ser por predefinição uma criatura alada.

Mas agora tudo tinha mudado, agora eu conseguia romper as barreiras estreitas e castradoras que me tinham imposto (pensavam eles que permanentemente) e podia ver as coisas de uma nova forma, mais aérea, mais abrangente da totalidade que, afinal, é a melhor forma de ver as coisas. Quando estava com os pés bem assentes na terra, era isso que me fazia lamentar a minha falta de sorte: só conseguia uma perspectiva que nem 180º graus tinha, uma perspectiva reduzida e minúscula, como se a realidade fosse tudo aquilo que eu podia ver num determinado momento e nada mais do que isso. É natural que eu continuava limitado (biologicamente falando) a uma visão não-omnisciente. O que mudara é que agora a minha visão conseguia abarcar mais mundo, mais realidade, mais verdade, por conseguinte.

O busílis é que, passado muito pouco tempo deste meu maravilhoso voo inaugural, comecei a aborrecer-me de tudo aquilo. Olhava para baixo, vendo a rua transformar-se em quarteirão, o quarteirão em bairro, o bairro em cidade... não preciso de continuar, pois não? Que treta, aquilo tudo! Era igualzinho a nada a não ser a si mesmo! (E àquela distância, começava mesmo a não se parecer com absolutamente nada!) O que me fez passar para a orografia do que via... Depois para um plano maior da Geografia...

E continuava a subir, inebriado em tantas coisas que agora conseguia ver! Sempre, sempre mais, sem limites para nada! Acabei por parar de olhar para baixo: estava farto daquela mesquinhez toda! Foi com grande ânsia que levantei a cabeça e vi o grande e glorioso Sol!!

Ceguei instantaneamente. Perdido em termos de cima e baixo, continuei a voar até à camada superior da atmosfera e na minha baralhação subi ainda mais. O oxigénio não era suficiente. Desmaiei. Caí... o meu corpo começou a desfazer-se em pó enquanto era incinerado pela reentrada.

sábado, janeiro 29, 2005

O frio

Era um vulcão e eu estava a tentar perceber se ele queria que eu me lançasse lá para dentro. O cheiro a enxofre fez-me pensar que nunca tinha estado tão perto do inferno, o que quer que fosse isso, e tal pensamento confortou-me. Bastava pensar que todas as coisas boas (i.e., proibidas) estão no inferno para se perceber o meu entusiasmo. Desci a encosta escarpada do cone. As minhas mãos não conseguiam sentir nem sequer o calor da lava que estava tão próxima, tal a quantidade de adrenalina que escorria pelas minhas veias inchadas do calor e da pressão sanguínea.

Um passo em falso e seria o meu fim. A ideia fez-me ter uma tontura - causalidade ou casualidade? (Se as palavras vos pareceram iguais, leiam mais devagar: o cérebro prega-nos destas partidas...) Agarrei-me com força, até os nós dos dedos ficarem brancos... amarelados... bom, o que lhe quiserem chamar. A verdade é que eu ia por ali abaixo, através de uma escadaria natural que parecia ter sido feita para mim.

Depois, não sei muito bem como, já estava de frente para aquele caldeirão vermelho, pedra ruborizada por comentários que a Mãe Terra lhe faz e liquefeita pelas pancadas das placas tectónicas, ou do manto, ou do núcleo sólido. Num acto de pura coragem dei um passo em frente e assisti ao solidificar da lava debaixo dos meus pés. Outro passo, o mesmo processo. Olhei confuso para o chão negro como a noite... Por falar em negrume, o céu estava a escurecer. Olhei para cima por puro instinto: um eclipse solar total. Por alguma razão a posição de diamante estava sem diamante. De súbito, apercebi-me do que se estava a passar.

Só para confirmar: despi a camisa e pus a minha mão direita sobre o lado esquerdo-centro do peito. Os dedos começaram-se a afundar na carne e em pouco tempo o coração estava já do lado de fora do meu corpo, ainda agarrado a alguma carne, com a aorta a palpitar loucamente; a temperatura baixou imediatamente. Fechei os olhos e abanei a cabeça mas não chorei: a lágrima congelaria. Repentinamente furioso, arranquei por completo o coração e esmaguei-o entre os meus dedos. Uma súbita rajada de frio espalhou-se pelo mundo e tudo congelou. Pelo menos para mim.

sexta-feira, janeiro 28, 2005

Mãe

Num singular momento da vida dele, o coração parou. Não parou de bater realmente, mas para ele o mundo parou - o coração tinha que acompanhar o mundo na paragem.

Ele tinha chegado mais cedo do trabalho, porque o patrão o tinha dispensado. Ia agora para casa da mãe, onde vivia - oh, a galhofa que isso era entre os colegas! Um homem de quase trinta anos a viver com a mãe! Eles ficavam minutos sem fim a rir-se dele!! Naquele dia, porém, não se tinham rido: tinham gargalhado a alto e bom som, as vibrações estrepitosas atravessando as divisórias e atingindo-o na cabeça, deixando-o como se tivesse a escorrer sangue dos ouvidos para o chão por lhe terem rebentado os tímpanos com um picador de gelo afiado... e ainda assim o som das gargalhadas infernais entrava-lhe por todos os poros, poluindo-o, manchando a sua auto-estima de forma irreparável. Quando o chefe lhe dissera que se podia ir embora, a sua alegria era apenas natural. Saiu sem falar a mais ninguém, sem sequer agradecer ao chefe.

O caminho era curto, mas de cada vez que o fazia tinha que escalar a maior montanha de que alguém alguma vez ouvira falar, bem como descer ao Fosso das Marianas, tudo ao mesmo tempo - subir e descer, rasgar a alma em duas e deixar a parte infernal subir para a salvação e a parte angelical descer para a corrupção. O ponto de reencontro, em que a metade direita do seu corpo se voltava a fundir com a parte esquerda, num sangrento e abjecto ritual, era à porta da sua casa. Ele quase que podia jurar que o chão ficava imperceptivelmente mais escuro a cada vez que ele regressava a casa; jurá-lo-ia se isso não fosse uma contradição. Como poderia ele aperceber-se do imperceptível, ele que nem sequer se apercebera de como uma única palavra tinha destruído o seu casamento numa noite de bebedeira e folia?

Nesse dia, meteu a chave na fechadura, entrou em causa e soltou um "Olá" jovial. Ouviu um barulho arranhado feito por uma garganta que não reconheceu e o som de metal a ser forçado por um sacão abrupto. Quando olhou na direcção das escadas viu a mãe pendurada por uma corda atada a um dos varões do corrimão, viva (e a estrebuchar contra vontade própria, dir-se-ia). As lágrimas corriam da sua face: ela não tinha querido que o filho visse o suicídio, que contrariedade!

E então o coração parara, com o resto do mundo. Ele sentia-se tão estúpido: nem sequer tinha conseguido deixar a mãe suicidar-se em paz!

quinta-feira, janeiro 27, 2005

Depois...

Era já noite... provavelmente 3 da manhã, ou assim. Não sabia porque o quarto era interior e não tinha nenhum relógio à mão.

O corpo dela estava encostado ao meu. Estava calor debaixo dos lençóis todos, e os pontos onde os nosso corpos se encontravam começavam agora a ficar suados de novo. Ao mesmo tempo, estava por ali uma maldita corrente de ar que causava impressão. «Vou acabar por me constipar se continuo assim, bolas!» Mas não me mexi dali. Não a queria acordar. Pensei bem naquilo, mas mesmo com muita concentração: «Fogo, mas afinal o que é isto?! O cliché diz que é o gajo que adormece, não a gaja! O mais engraçado são aquelas descrições super-românticas que aparecem nos livros e nos filmes, como se depois de tudo, ainda houvesse paciência para aquelas coisas todas...!» Resmunguei para mim mesmo algo incompreensível e olhei para a cara dela, que estava virada para mim. Não tinha aquele ar de quem está a dormir em paz e tranquilidade. Tinha uma cara perturbada. Já não me importei se ela acordava ou não... Desentrelacei as minhas pernas das dela, levantei-me e vesti as calças de luz apagada.

Mais uma. Mais uma pessoa que me tinha lançado nas ardentes fornalhas da indecisão, do medo, da insegurança total e completa, mesmo depois de se ter entregue a mim com o que me pareceu uma paixão e um desejo insaciáveis. Odiei-a. Odiei ter fornicado com ela. E, no entanto, não consegui deixar de adorar e de contemplar já com saudade o momento específico em que o orgasmo me fez libertar para dentro dela jacto após jacto de um líquido branco, de semente da vida. Era só o momento mágico em que conseguia sair de mim, sair do meu corpo, sair de toda a consciência, que eu queria. O resto... era quase nojenta a forma como todos aqueles líquidos se misturavam e nos tocavam a pele... A saliva ressequida nos cantos da boca a formar pequenos grânulos brancos, o cheiro intenso e penetrante que ainda estava nos dedos que tinha posto dentro dela! Como tudo aquilo me dava a volta ao estômago, agora que tinha terminado!

Devia haver uma máquina que providenciasse orgasmos instantâneos, explosivos e limpos! Com relógio, para eu saber sempre que horas são e não me atrasar. Espero que a minha mulher tenha feito serão no trabalho...

quarta-feira, janeiro 26, 2005

A meta

A meta estava ali, tão próxima que quase era palpável, tão emocionantemente próxima que tudo o mais parecia ter-se evaporado completamente, sido remetido ao oblívio. O aplauso do público era uma explosão distante e contínua que já não exercia qualquer influência sobre mim. O que interessava era ganhar, era chegar primeiro que todos os outros! Estava à frente, estava em primeiro lugar, mais ninguém conseguia ser melhor do que eu; tudo aquilo pelo que eu sempre trabalhara estava a meros metros de mim e depois disso nada mais interessaria para ninguém, porque eventualmente iria cair no esquecimento, nunca mais seria lembrado - ou então sê-lo-ía de forma muito marginal, como um troféu que já é mais pó do que troféu, como uma glória passada quase pública, sem que ninguém pense por um momento neste ponto no continuum espaço-tempo em que todas estas ideias me passaram pela cabeça.

É um segundo de irritação, um segundo de niilismo idiota e inútil, é o tempo de pôr o pé esquerdo à frente do direito. É um curto espaço de nada, em que nada se faz, mas em que consegui decidir a minha vida e em que resolvi falhar. Caí. A minha cara embateu violentamente contra o empoeirado asfalto, o sangue brotou da minha pele rasgada, pó entrou pela minha boca, dando aquele gosto amargo e desagradável da derrota à minha derrota. Por entre as dores, sorri. Por entre a queda em espiral para dentro de um profundo coma causado por um traumatismo craniano, também sorri. Agora iam-se lembrar de mim com mais dor e eficácia!

Ou não...

terça-feira, janeiro 25, 2005

Acusado

Era sangue que escorria da ferida aberta acidentalmente na ponta do meu dedo indicador direito. Para olhá-la, tinha que apontar para mim próprio, tinha que me sentir acusado e acusador numa só pessoa.

Depois era aquela sensação de sucção, aquele turbilhão. Estava no meio do mar e vinha uma onda bater-me no meio do peito, derrubando-me com força, fazendo-me perder o sentido de cima e baixo, de direita e de esquerda, de centro e de equilíbrio, com a água a entrar pelas minhas vias respiratórias dentro, deixando o ar de fora; era o sabor do mar, do sal na minha boca e no meu nariz e nos meus olhos em chamas e era o frio que me penetrava fisicamente para me fazer perder a consciência! Mas afinal a onda recuava já, eu estava a salvo, podia finalmente inalar e sentir o oxigénio a vivificar-me...! Estava de gatas, a procurar controlar a respiração, pensando: «É preciso ter azar! Ainda não foi desta..."

Ou então era um órfão numa terra distante, agarrado ao corpo moribundo da minha mãe, a chorar - não!, a suplicar - por comida, por comida que ela não podia dar. Eu só conseguia sentir o medo dela, a dor que os meus ossos provocavam ao roçar contra a minha pele: sim, que tudo o resto já tinha sido consumido pelo meu corpo, esse canibal autofágico que me queria matar. Só que nem o meu choro acordava a minha mãe do seu afinal descanso eterno, nem me matavam a fome e a sede as lágrimas que eu voltava a engolir. Era realmente uma infelicidade que eu não tivesse já força suficiente para retalhar, cozinhar e comer aquele corpo, que afinal só estava exangue.

Aquela pequena gota de sangue apontava para mim, como se eu tivesse culpa de todo o sangue que corria nesse preciso momento da ferida fatal de alguém, ou do ventre de todas as mulheres menstruadas. Enojei-me comigo mesmo por ter carne e ser matéria pronta a decompor. E a acusação mantinha-se.

segunda-feira, janeiro 24, 2005

Vinte e quatro horas

Era interessante se lá fora não estivesse a chover. Mas está. A chuva cai nas folhas já ensopadas e eu não consigo encontrar uma linha na página pautada que tenho na mão.

Penso apenas: "ainda bem que não sou um caracol, que não tenho a sua lentidão, ou morreria de stress prematuramente!" Depois encontro alguém a correr a alta velocidade, ou num carro desportivo topo de gama e desejo ser um caracol, para poder ter mais alguma velocidade.
É claro que também odiava ser aquela minhoca que rasteja por debaixo do solo, cega, engolindo os pequenos minerais que lhe chegam ao seu tracto digestivo - coitada, não pode nem contemplar a luz do Sol. Depois quando saio à rua e o Sol me faz doer os olhos, desejo poder enterrar-me nas profundezas dos abismos da Terra para não ter de suportar aquela dor.

Pára de chover entretanto, mas o vento ainda sopra e eu olho a pétala que cai docemente no pavimento alcatroado, para de seguida um carro lhe passar por cima, deixando nela uma impressão de pneu. Sinto-me horrivelmente esmagado por este acto de insana loucura e sadismo e apetece-me vazar os olhos ao condutor por ter prostituído a beleza... Não - nem foi prostituição, que essa envolve pagamento e neste caso apenas houve... violação! Foi o condutor que rasgou o interior do próprio conceito de beleza, que o esmagou debaixo de si! (Vi, no dia seguinte, que afinal era uma mulher quem conduzia o carro àquela hora, todos os dias... A agridoce ironia quase me fazia chorar.)

Ouço finalmente o tiquetaque do relógio. É velho, de parede, dos antigos. Cada badalada a meio da noite é um tiro de caçadeira nos meus miolos, e o meu quarto fica então regado com sangue, neurónios, células de glia, neurotransmissores, pedaços de osso e pele e uma vida que foi outrora... Só quando o despertador toca é que tudo volta ao sítio: a carne, o osso e a pele reconstroem-se por magia e eu fico sem saber se o relógio me matou com um tiro de caçadeira. É claro que, uma hora depois, ao chegar à escola, bastam dez minutos para desejar que o pesadelo que se repete todas as noites tivesse sido real.

São 22:30, diz o meu relógio de pulso digital. «Porra!», exclamo. É da fadiga, claro. Só pode ser. Mas a verdade é que não me faço rogado. Toco-me. Venho-me. Limpo-me. Não adormeço. Reviro-me na cama e só sei pensar: «Porra. Porra... porra, porra porraporraporraporra!» Pergunto-me pela porra do significado da porra da palavra "porra"... Porra, não o sei! E o dicionário está a mais de dez centímetros de mim, portanto que se lixe o dicionário e mais a porra da palavra que uso sem saber exactamente - porra!, quero eu dizer "minimamente" - o que significa.

Foram vinte e quatro horas - daqui a nada serão os meus miolos novamente espalhados na parede - e nada se fez realmente. Penso no vento, que todos creêm que "passa" e que não faz nada: «os estúpidos e ignorantes que inventaram essa metáfora deviam estar a dormir! Levem lá com um furacão nos cornos e vejam se por acaso o vento não faz nada, ó espertinhos!» Depois choro. Não me reconheço nestas barbaridades todas. Não era assim que eu era antes de me virem derrubar do poleiro instável onde mantive a minha mente intacta durante tanto tempo. Cresci tanto que me esqueci de como é que se usavam os olhos para olhar para baixo, o que me levou a engordar, a encher, a insuflar como um balão... mas de chumbo, de pirite, de estrume infecto e rançoso.

Continuo sem conseguir encontrar uma linha numa página pautada. Só vejo traços irregulares gravados no papel e penso se não será isso a que chamam linha. O problema é que para mim uma linha conduz a alguma coisa, nem que seja ao infinito, enquanto que estas, ao chegarem ao fim da página, se precipitam no nada. E do nada já eu estou farto. Pego na caneta e desenho o símbolo de infinito, irregularmente. «Aí está uma linha decente, ó idiotas!», exclamo em voz alta. Só depois é que vejo que perdi o princípio e que por causa disso vou perder o fim.