Mãe
Num singular momento da vida dele, o coração parou. Não parou de bater realmente, mas para ele o mundo parou - o coração tinha que acompanhar o mundo na paragem.
Ele tinha chegado mais cedo do trabalho, porque o patrão o tinha dispensado. Ia agora para casa da mãe, onde vivia - oh, a galhofa que isso era entre os colegas! Um homem de quase trinta anos a viver com a mãe! Eles ficavam minutos sem fim a rir-se dele!! Naquele dia, porém, não se tinham rido: tinham gargalhado a alto e bom som, as vibrações estrepitosas atravessando as divisórias e atingindo-o na cabeça, deixando-o como se tivesse a escorrer sangue dos ouvidos para o chão por lhe terem rebentado os tímpanos com um picador de gelo afiado... e ainda assim o som das gargalhadas infernais entrava-lhe por todos os poros, poluindo-o, manchando a sua auto-estima de forma irreparável. Quando o chefe lhe dissera que se podia ir embora, a sua alegria era apenas natural. Saiu sem falar a mais ninguém, sem sequer agradecer ao chefe.
O caminho era curto, mas de cada vez que o fazia tinha que escalar a maior montanha de que alguém alguma vez ouvira falar, bem como descer ao Fosso das Marianas, tudo ao mesmo tempo - subir e descer, rasgar a alma em duas e deixar a parte infernal subir para a salvação e a parte angelical descer para a corrupção. O ponto de reencontro, em que a metade direita do seu corpo se voltava a fundir com a parte esquerda, num sangrento e abjecto ritual, era à porta da sua casa. Ele quase que podia jurar que o chão ficava imperceptivelmente mais escuro a cada vez que ele regressava a casa; jurá-lo-ia se isso não fosse uma contradição. Como poderia ele aperceber-se do imperceptível, ele que nem sequer se apercebera de como uma única palavra tinha destruído o seu casamento numa noite de bebedeira e folia?
Nesse dia, meteu a chave na fechadura, entrou em causa e soltou um "Olá" jovial. Ouviu um barulho arranhado feito por uma garganta que não reconheceu e o som de metal a ser forçado por um sacão abrupto. Quando olhou na direcção das escadas viu a mãe pendurada por uma corda atada a um dos varões do corrimão, viva (e a estrebuchar contra vontade própria, dir-se-ia). As lágrimas corriam da sua face: ela não tinha querido que o filho visse o suicídio, que contrariedade!
E então o coração parara, com o resto do mundo. Ele sentia-se tão estúpido: nem sequer tinha conseguido deixar a mãe suicidar-se em paz!
Ele tinha chegado mais cedo do trabalho, porque o patrão o tinha dispensado. Ia agora para casa da mãe, onde vivia - oh, a galhofa que isso era entre os colegas! Um homem de quase trinta anos a viver com a mãe! Eles ficavam minutos sem fim a rir-se dele!! Naquele dia, porém, não se tinham rido: tinham gargalhado a alto e bom som, as vibrações estrepitosas atravessando as divisórias e atingindo-o na cabeça, deixando-o como se tivesse a escorrer sangue dos ouvidos para o chão por lhe terem rebentado os tímpanos com um picador de gelo afiado... e ainda assim o som das gargalhadas infernais entrava-lhe por todos os poros, poluindo-o, manchando a sua auto-estima de forma irreparável. Quando o chefe lhe dissera que se podia ir embora, a sua alegria era apenas natural. Saiu sem falar a mais ninguém, sem sequer agradecer ao chefe.
O caminho era curto, mas de cada vez que o fazia tinha que escalar a maior montanha de que alguém alguma vez ouvira falar, bem como descer ao Fosso das Marianas, tudo ao mesmo tempo - subir e descer, rasgar a alma em duas e deixar a parte infernal subir para a salvação e a parte angelical descer para a corrupção. O ponto de reencontro, em que a metade direita do seu corpo se voltava a fundir com a parte esquerda, num sangrento e abjecto ritual, era à porta da sua casa. Ele quase que podia jurar que o chão ficava imperceptivelmente mais escuro a cada vez que ele regressava a casa; jurá-lo-ia se isso não fosse uma contradição. Como poderia ele aperceber-se do imperceptível, ele que nem sequer se apercebera de como uma única palavra tinha destruído o seu casamento numa noite de bebedeira e folia?
Nesse dia, meteu a chave na fechadura, entrou em causa e soltou um "Olá" jovial. Ouviu um barulho arranhado feito por uma garganta que não reconheceu e o som de metal a ser forçado por um sacão abrupto. Quando olhou na direcção das escadas viu a mãe pendurada por uma corda atada a um dos varões do corrimão, viva (e a estrebuchar contra vontade própria, dir-se-ia). As lágrimas corriam da sua face: ela não tinha querido que o filho visse o suicídio, que contrariedade!
E então o coração parara, com o resto do mundo. Ele sentia-se tão estúpido: nem sequer tinha conseguido deixar a mãe suicidar-se em paz!
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