quinta-feira, maio 19, 2005

Tempestade, parte 1

Cavalgo livre pelas longas pradarias e planaltos que longamente me viram crescer, que sentiram em si o peso do meu corpo em todos os minutos de todos os anos que já consegui atravessar. Por debaixo de mim, o cavalo esforça-se para manter o ritmo que lhe imponho, e que eu acompanho sem dificuldade, o corpo habituado ao sobe-e-desce compassado das cavalgadas poderosas que dou de vez em quando, apenas para aliviar momentaneamente o stress, para sentir a única forma de liberdade que me é dada experimentar. O caminho já é um velho conhecido, as suas pedras são parte dos desenhos que estão na palma da minha mão, e mesmo quando o vento ou uma chuvada mais forte muda algo de posição, eu consigo rapidamente senti-lo e habituar-me. Tudo isto me é tão familiar como o meu próprio corpo, que já tantas vezes as minhas mãos exploraram na busca de uma forma de prazer que me agradasse realmente.

Estava frio naquele sol posto. As nuvens cobriam o pouco brilho que ainda pontuava o céu, e o vento parecia arrastar consigo uma fúria inusitada, uma vontade de arrancar tudo na sua passagem. Ah, o vento... A esse também o conheço eu. Ele é um frustrado. Ele quer sempre mais, quer sempre ser maior, ser alimentado de mais força, mas só muito raramente consegue soltar todas as suas ambições e violentar então a humanidade que procura poluí-lo como se ele não existisse. Procura todos os sopros esquecer que ele permite a essa mesma humanidade que viva e que destrua tudo aquilo que ama. Algo ali era ominoso.

Então, no segundo depois de fechar os olhos e sentir o vento a bater-me na cara e a levar-me os cabelos compridos para trás das costas, senti um pulsar interno, senti uma força dentro de mim. Senti aquilo que já tinha procurado, que já tinha julgado fantasia, que já tinha julgado assombração ou loucura... Um trovão caiu perto de mim, senti na boca o estranho sabor metálico que sempre permeia aquelas quase-noites. Olhei para cima: não haviam nuvens suficientes para despoletar uma tempestade, muito menos para fazer aparecer um trovão daqueles. Intrigado, continuei a cavalgar, ainda olhando para os céus e para a Lua, em quarto crescente. De repente, o cavalo empinou-se, quase me atirando ao chão com a paragem súbita. Atordoado, olhei para baixo e vi a figura de uma rapariguinha sozinha, de pé, sem qualquer medo do cavalo, apesar de quase ter sido pisoteada por ele. Em volta congregavam-se as sombras das nuvens e o ar estava ainda mais carregado. O seu olhar era sombrio, pouco próprio de alguém tão novo. (Demorei um pouco, na escuridão, a reparar na quantidade de rugas que ocasionalmente apareciam no seu rosto macio e sedoso.)

"Now...you're no different now
Still the same, the Devil's whore
Lilith on the prowl
I...I've got something for you
I know what real pain is
And you will too
"
- "Jack", Iced Earth