Fome
Olho para a ponta do meu dedo indicador da mão direita. Mais uma vez, ele aponta para mim, e eu sinto a fúria existencial de ser verdade, de nunca conseguir atingir um único segundo de paz entre todos os momentos de sofrimento em que eu respiro (expiro e inspiro para tentar viver e para tentar manter este corpo pesado e mole ao mesmo tempo) e de estar diante de mim, acusado e acusador, sentindo o peso de uma consciência que não afrouxa jamais, que me persegue até mesmo quando tento dormir, quando tento alcançar o doce oblívio do sono - porquê, oh porquê? a crueldade do sono REM? - e é nestas alturas que me sinto perdido, sem quaisquer referências a este mundo; então a acusação deixa de ser de inocência ou culpa e passa a ser uma de sentimento de não-pertença, de invasão, de quem entreou num reino desconhecido de forma ilegal.
Só depois consigo pensar que eu não entrei, mas que me fizeram entrar. Que não tenho a culpa de me terem feito nascer e que mesmo que tivesse, ir daqui para lado nenhum não provaria ser melhor solução do que continuar aqui. (Quer dizer, sobre este tema não tenho uma real e definitiva certeza... o que me garante que, porventura, não ser não será melhor do que ser em dor? Ao mesmo tempo, como é que algo pode ser melhor quando não é? A inexistência provoca sempre a perda de consciência e a suspensão do sofrimento não é benfazeja porque não a conseguirei sentir. Ainda assim, com toda a lógica que as circunvoluções do meu cérebro conseguem atingir, o meu coração persiste em querer-se desviar deste caminho tão rectilíneo para outras paragens distantes e desconhecidas, em que tudo o que se sabe é que não se consegue saber nada.)
Tentando por fim dar fim à dor, mordo a ponta do meu dedo, rasgo osso, músculo e tendão e mastigo tudo ao sabor do sangue que jorra. Não demora muito até que todo o dedo esteja dentro da minha boca a ser mastigado: cuspo a unha para não me aleijar e também os ossos depois de os roer. Parto para os outros dedos e para o resto da mão, repito o processo e agora sim - oh, sim finalmente! - sinto-me tão cheio de mim fisicamente quanto existencialmente. Continuo a comer o meu braço e o sangue escorre para dentro da minha garganta: sinto-lhe o sabor metálico, estranho e profundo que talvez vá prejudicar a difícil digestão desta carne tão pouco rica (nós, humanos, nem como alimento somos bons - quão longe estamos do resto da natureza que nos pariu!)
Pararei quando me sentir saciado.
Só depois consigo pensar que eu não entrei, mas que me fizeram entrar. Que não tenho a culpa de me terem feito nascer e que mesmo que tivesse, ir daqui para lado nenhum não provaria ser melhor solução do que continuar aqui. (Quer dizer, sobre este tema não tenho uma real e definitiva certeza... o que me garante que, porventura, não ser não será melhor do que ser em dor? Ao mesmo tempo, como é que algo pode ser melhor quando não é? A inexistência provoca sempre a perda de consciência e a suspensão do sofrimento não é benfazeja porque não a conseguirei sentir. Ainda assim, com toda a lógica que as circunvoluções do meu cérebro conseguem atingir, o meu coração persiste em querer-se desviar deste caminho tão rectilíneo para outras paragens distantes e desconhecidas, em que tudo o que se sabe é que não se consegue saber nada.)
Tentando por fim dar fim à dor, mordo a ponta do meu dedo, rasgo osso, músculo e tendão e mastigo tudo ao sabor do sangue que jorra. Não demora muito até que todo o dedo esteja dentro da minha boca a ser mastigado: cuspo a unha para não me aleijar e também os ossos depois de os roer. Parto para os outros dedos e para o resto da mão, repito o processo e agora sim - oh, sim finalmente! - sinto-me tão cheio de mim fisicamente quanto existencialmente. Continuo a comer o meu braço e o sangue escorre para dentro da minha garganta: sinto-lhe o sabor metálico, estranho e profundo que talvez vá prejudicar a difícil digestão desta carne tão pouco rica (nós, humanos, nem como alimento somos bons - quão longe estamos do resto da natureza que nos pariu!)
Pararei quando me sentir saciado.
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