sábado, abril 23, 2005

Fome

Olho para a ponta do meu dedo indicador da mão direita. Mais uma vez, ele aponta para mim, e eu sinto a fúria existencial de ser verdade, de nunca conseguir atingir um único segundo de paz entre todos os momentos de sofrimento em que eu respiro (expiro e inspiro para tentar viver e para tentar manter este corpo pesado e mole ao mesmo tempo) e de estar diante de mim, acusado e acusador, sentindo o peso de uma consciência que não afrouxa jamais, que me persegue até mesmo quando tento dormir, quando tento alcançar o doce oblívio do sono - porquê, oh porquê? a crueldade do sono REM? - e é nestas alturas que me sinto perdido, sem quaisquer referências a este mundo; então a acusação deixa de ser de inocência ou culpa e passa a ser uma de sentimento de não-pertença, de invasão, de quem entreou num reino desconhecido de forma ilegal.

Só depois consigo pensar que eu não entrei, mas que me fizeram entrar. Que não tenho a culpa de me terem feito nascer e que mesmo que tivesse, ir daqui para lado nenhum não provaria ser melhor solução do que continuar aqui. (Quer dizer, sobre este tema não tenho uma real e definitiva certeza... o que me garante que, porventura, não ser não será melhor do que ser em dor? Ao mesmo tempo, como é que algo pode ser melhor quando não é? A inexistência provoca sempre a perda de consciência e a suspensão do sofrimento não é benfazeja porque não a conseguirei sentir. Ainda assim, com toda a lógica que as circunvoluções do meu cérebro conseguem atingir, o meu coração persiste em querer-se desviar deste caminho tão rectilíneo para outras paragens distantes e desconhecidas, em que tudo o que se sabe é que não se consegue saber nada.)

Tentando por fim dar fim à dor, mordo a ponta do meu dedo, rasgo osso, músculo e tendão e mastigo tudo ao sabor do sangue que jorra. Não demora muito até que todo o dedo esteja dentro da minha boca a ser mastigado: cuspo a unha para não me aleijar e também os ossos depois de os roer. Parto para os outros dedos e para o resto da mão, repito o processo e agora sim - oh, sim finalmente! - sinto-me tão cheio de mim fisicamente quanto existencialmente. Continuo a comer o meu braço e o sangue escorre para dentro da minha garganta: sinto-lhe o sabor metálico, estranho e profundo que talvez vá prejudicar a difícil digestão desta carne tão pouco rica (nós, humanos, nem como alimento somos bons - quão longe estamos do resto da natureza que nos pariu!)

Pararei quando me sentir saciado.